Espiritualidade

A Sagrada Face e a necessidade de reparação

Contempla a minha Face, e penetrarás nos abismos de dor do meu Coração. Consola-me e procura almas que se imolem comigo, pela salvação do mundo.

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Reparar os nossos pecados é uma necessidade real ou apenas um costume “ultrapassado”? Em um mundo onde o pecado muitas vezes é relativizado, a tradição cristã nos recorda que o amor exige resposta, e a justiça em muitos casos pede restauração. A devoção à Sagrada Face nos recorda essa verdade e nos convida a oferecer a Cristo um gesto de consolação que brota de um coração que O procura com sinceridade. Mas como funciona? Quais são os seus fundamentos, seu histórico, e como ela pode se aplicar no nosso cotidiano?

É necessário “reparar” os nossos pecados?

A devoção à Sagrada face está intrinsecamente ligada ao que, em teologia espiritual, chamamos de “atos de reparação”. Eles não são novos, antiquados ou próprios da espiritualidade de uma época passada, como muitos afirmam; ao remontarmos sua origem, vemos que estão presentes já no Antigo Testamento, e que encontram no Novo o seu significado mais pleno. A revisão histórica, contudo, deve concordar com a sua modernidade. De fato, não estiveram muito presentes ao longo da história da Igreja de forma explícita. Difundiram-se em meados do século XVII, em conjunto com a grande popularidade da devoção ao Sagrado Coração de Jesus – fortemente motivada pelas aparições do Senhor à Santa Margarida Maria Alacoque [1].

Mas o que são esses “atos de reparação”? Para entendermos, podemos partir do nosso cotidiano. Os atos de injustiça que cometemos ou que os outros cometem contra nós exigem duas coisas: o perdão, da parte que recebeu o dano, e uma espécie de “reparação” pelo mal causado [2]. Um acidente de trânsito não proposital pode facilmente ser perdoado. Mas a parte que estava errada, por um dever de justiça, deve indenizar os danos materiais da outra parte. Deve, ao menos, pagar o conserto do veículo de quem, por erro seu, sofreu o acidente. Da mesma forma, alguém que peca por maledicência precisa, por dever de justiça e caridade, além de pedir o perdão, utilizar-se de todos os meios que dispõe para restituir a boa fama da pessoa em questão [3].

Se esta lei está implícita no convívio humano e é tão natural a todos nós, também nas nossas relações com Deus ela está, de certa forma, presente. Ao tomarmos os relatos da história de Israel no Antigo Testamento, podemos verificar os grandes males que o pecado causou. As consequências exigiram do povo de Deus, mais de uma vez, o preço de sangue, não por mera vingança divina, mas pelos desdobramentos inevitáveis que o seu pecado causava. Um dos grandes dramas presentes no livro de Crônicas, e que pode ilustrar o nosso ponto em questão, é a tomada do Templo de Jerusalém por estrangeiros, e, consequentemente, a sua profanação.

O relato presente em 2 Cr 28, 22- 29,36, indica que o rei Acaz, em seu desespero para vencer as ofensivas dos edomitas contra Judá, recorreu à adoração de deuses estrangeiros. A situação ficou pior quando o rei optou por oferecer sacrifícios no Templo de Jerusalém, despedaçando utensílios da Casa do Senhor, fechando suas portas e construindo altares às divindades pagãs. É só com o reinado de Ezequias que o Templo seria restaurado novamente. Após reunir os levitas, o rei ordenou que estes purificassem o Templo de toda impureza e o santificassem novamente. Para tal, ele faria uma aliança com Deus a fim de afastar do povo a sua “ira ardente” (29,10), em uma espécie de reparação pelos males cometidos até ali.

O Novo Testamento e o sentido da reparação em Cristo

Na plenitude dos tempos, com o advento do Senhor, é possível encontrar também referências, no próprio Evangelho aos atos de reparação. Quando tomamos a passagem de Lc 7,36-50, nos deparamos com uma cena emocionante: uma pecadora pública coloca-se aos pés de Jesus, suplicando o seu perdão. Chorando a dor das suas faltas, lavou-os com suas lágrimas, enxugou-os com seus cabelos e ungiu-os com perfume. Bastava-lhe a conversão do coração e o arrependimento sincero de suas culpas. Mas ela foi além. Nas palavras de São Gregório Magno,

Os olhos que cobiçaram as coisas terrenas, agora estavam repletos de lágrimas de penitência. Os cabelos que lhe serviam para realçar o rosto, agora enxugavam as lágrimas. Se a sua boca pronunciava coisas impuras, agora era purificado, beijando os pés do Senhor. (...) o perfume que outrora usou para perfumar o corpo, aplicado indignamente sobre si mesma, era oferecido louvavelmente à Deus. (...) por mais prazeres que ela tivesse em si mesma, tantas oferendas ela inventou de si mesma, convertendo o número de suas faltas no número de suas virtudes” [4].

Este oferecimento de algo que ia além do meramente necessário – o seu amor – foi o que fez com que o Senhor lhe desse o perdão de seus pecados, e a sua salvação. Ela não o conseguiu com méritos próprios, mas antes, em conformidade com a redenção que o próprio Cristo haveria de realizar.

Com sua obediência até a morte, Jesus ofereceu-se como sacrifício expiatório, carregando os pecados de muitos, justificando-os levando-os sobre Ele [5]. Não eram os pecados somente das pessoas que viveram antes d’Ele, mas sim de todos os séculos que ainda viriam.

Cada gota de sangue derramado de Cristo em sua Paixão, foi para a expiação dos pecados que a humanidade inteira cometeu e ainda haveria de cometer, prestando reparação por nossas faltas e satisfazendo o Pai por nossos pecados [6].

Neste sentido, a unção que fez a pecadora aos pés de Cristo e os nossos pequenos atos de reparação que fizemos e haveremos de fazer, são como que consolos, que podemos dar à Cristo em sua Paixão quando unimos o nosso coração ao d’Ele. Tendo a todos nós e toda a nossa vida diante de seus olhos em sua obra Redentora, por sua divindade, acolheu também como um bálsamo em meio a tantos sofrimentos e crueldades as nossas pequenas atitudes de amor.  

Contudo, é importante que aqui deixemos algo bem claro: Como Cristo não precisava que seus pés fossem ungidos com o mais caro perfume da época, também hoje, ressuscitado nos céus e impassível [7] não precisa de nossas obras de reparação. O que chamamos hoje de “reparação” é um gesto que podemos fazer de profundo agradecimento e amor à Deus em meio a tantos pecados e revoltas contra Ele. Essas atitudes têm mais um valor interior, pois fortalecem a nossa humildade, trabalham em nós a virtude do temor de Deus, e nos dão ciência da insondável onipotência divina. Assim, o consolo que se pode dar a Jesus nos fortalece em nossa própria luta contra o pecado, em um tempo em que para muitos, ele tornou-se regra de vida.

A reparação através do Sagrado Coração de Jesus

Como dito acima, a prática moderna da reparação difundiu-se juntamente com a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. No total, o Senhor fez quatro grandes aparições à Santa Margarida Maria de Alacoque. Todas elas se deram diante do Santíssimo Sacramento exposto e enquanto ela estava entregue à oração e adoração. É na terceira e quarta aparições – ocorridas em 2 de julho de 1674 e na oitava de Corpus Christi de 1675, respectivamente – que encontramos, nos relatos da Irmã Margarida, as seguintes palavras do Mestre:

As ingratidões são-me mais dolorosas do que os sofrimentos da minha Paixão e se os homens me correspondessem de alguma forma ao meu amor, muito pouco julgaria o que sofri por eles e estaria disposto, se fosse possível, a fazer algo mais...(...) descobrindo o seu divino Coração, disse: Eis aquele Coração que tanto amou os homens e que a nada se recusou até afligir-se e consumir-se por amor deles, mas como recompensa da maioria deles só recebo ingratidões. E o que mais me fere é que corações a mim consagrados me tratem assim” [8].

O Coração do Filho, ferido por nossos pecados, pede, portanto, uma digna reparação abrindo-se, em sua misericórdia infinita, para conceder grandes tesouros de amor aos que as fizerem [9]. Jesus quer remediar, desta maneira, as grandes consequências devastadoras do pecado na humanidade, em que, já nesta época, sofria com os males do racionalismo. O exercício de olhar para o Coração de Cristo e ver nele o nosso próprio, nos inspira atitudes concretas de amor, de reparação, e que tem efeitos profundos na nossa própria conversão. Essas atitudes, contudo, precisam ser feitas sempre em um espírito litúrgico, ou seja, por Cristo, com Cristo e em Cristo. Por Cristo, pois Ele é o mediador entre nós e o Pai; Com Cristo, pois é Ele o modelo de nossas virtudes; Em Cristo, pois é Ele quem nos infundirá os seus sentimentos em nossos corações (cf. Fl 2,5).

A devoção à Sagrada Face de Cristo

A partir das bases estabelecidas pelas visões de Santa Margarida, e, posteriormente, da incorporação da festa do Sagrado Coração de Jesus ao calendário litúrgico da Igreja pelo Papa Pio IX, surgiram muitas outras devoções relacionadas à reparação dos sofrimentos do Senhor através de elementos próprios da sua humanidade Santíssima.

Àquela que particularmente compete a este artigo teve duas possíveis origens conhecidas: A primeira é da Itália, onde já haviam resquícios de sua existência desde a descoberta do Santo Sudário em 1578. Contudo, é através das experiências místicas da Beata Maria Pierina de Micheli, no fim do século XIX, que ela ganha força e projeção [11].

De acordo com os relatos, tudo acontece em uma sexta-feira santa. A menina, de apenas doze anos, ao beijar o crucifixo, ouve de Jesus as seguintes palavras:

Ninguém me dá um beijo de amor na face para reparar o beijo de Judas”.

Desde então, viu delineada a sua vocação: dar a Jesus, e só a Ele, todos os seus beijos de amor, em lugar de tantos beijos sacrílegos de mil e mil Judas traidores [12]. Ela tornou-se assim uma verdadeira apóstola desta devoção, difundindo-a com sua vida e orações.

Em outra revelação privada, ocorrida no dia 27 de maio de 1938, podemos encontrar o vínculo profundo que há entre essa e a devoção ao Sagrado Coração. Disse o Senhor:

Contempla a minha Face, e penetrarás nos abismos de dor do meu Coração. Consola-me e procura almas que se imolem comigo, pela salvação do mundo”.

Desta forma, a postura diante da Sagrada face completa o dever de reparação ao Coração Santo do Senhor, abrindo-nos ao mesmo tempo os seus mistérios.

A segunda possível origem se dá em Tours, na França. Cerca de um século antes das aparições à Irmã Maria Pierina de Micheli, uma outra Irmã, desta vez carmelita, também recebera revelações semelhantes. Difundidas posteriormente por León Papin Dupont, um leigo, que após muito esforço conseguiu a aprovação eclesiástica para tal devoção, estas se popularizaram não com base no Santo Sudário de Turim, mas no véu de Verônica, que, segundo a Tradição, carregava nele impresso a estampa da Sagrada Face.

Verônica é uma mulher da qual não se tem certeza de sua existência histórica com tal nome, e que, segundo alguns relatos, consolou o Senhor no caminho do Calvário enxugando-lhe o rosto. Dupont teria estabelecido inúmeras confrarias a fim de espalhar a devoção, dentre as quais a família de Santa Teresinha do Menino Jesus fez parte posteriormente, marcando definitivamente a espiritualidade da pequena flor do Carmelo incorporando-se ao seu próprio nome posteriormente.    

Fato é que, de um modo ou de outro, o rosto é, para nós, aquilo que revela a nossa identidade. Confere um conhecimento singular do próximo. Mostra aquilo que é íntimo, indica sentimentos, pensamentos, emoções. O rosto revela o coração.

O Antigo Testamento é repleto de referências acerca do conhecimento de Deus e de sua progressiva revelação. Nela, encontramos belas, mas também misteriosas passagens acerca do rosto de Deus. Na teofania do monte Sinai, Moisés contemplou a Deus “de costas”, pois, do contrário, se o visse face-a-face, morreria (cf. Ex 33, 21-22). A glória de Deus era inacessível aos homens. A contemplação de seu rosto equivalia ao seu conhecimento, da qual o homem era privado desde o pecado original.

Com o mistério da Encarnação, Deus revela o seu rosto de forma definitiva. Na humanidade Santíssima do Senhor, contemplamos a face amorosa de Deus. A impressão dessa face, chagada e ensanguentada por causa da sua Paixão, é o centro dessa devoção. Contemplar diretamente essa face piedosíssima é a porta de entrada para o Coração amoroso de Deus, que arde de amor por nós.

Como Verônica, devemos enxugar o sangue do rosto de Cristo e consolá-lo, pelos tantos pecados cometidos diante de tanto amor. Essa contemplação nos inspira a piedade e a conversão, imprimindo em nós, espiritualmente, a própria imagem e semelhança de Deus.

No Brasil a comemoração da Sagrada Face reserva-se, liturgicamente, à terça-feira de carnaval. A data é significativa. Em meio a um dia em que os pecados dos homens se multiplicam, essa devoção nos ajuda a recordar a extensão infinita do amor de Deus na contemplação do rosto amoroso de Cristo, e o chamado d’Ele à nossa conversão. Neste carnaval, unamo-nos à Igreja na contemplação amorosa deste rosto santíssimo, e façamos da oração de Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face, fonte de propósitos de nossa vida espiritual:

“(...) Ó Jesus, Vossa Face é a única beleza que encanta o meu coração. (...) suplico-vos, imprimi em meu coração Vossa divina Imagem, e inflamai-me com Vosso amor, a fim de que possa chegar em breve a contemplar vossa face gloriosa no céu” [13].

Referências:

[1] José Valsânia O.P. O Sagrado Coração e a reparação: temas de pregação dos padres dominicanos. São Paulo: Pia Sociedade de São Paulo, 1963. (página 12).

[2] CIC, 2487;

[3] Ibid. 2486;

[4] São Gregório Magno, em Catena Áurea: p. 272

[5] CIC, 615;

[6] Ibid. 616;

[7] Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. I Pars, q.9, a.1;

[8] José Valsânia O.P. O Sagrado Coração e a reparação: temas de pregação dos padres dominicanos. São Paulo: Pia Sociedade de São Paulo, 1963. (página 19-20).

[9] Missal Romano. Oração Coleta da Missa do Sagrado Coração de Jesus;

[10] José Valsânia O.P. O Sagrado Coração e a reparação: temas de pregação dos padres dominicanos. São Paulo: Pia Sociedade de São Paulo, 1963. (página 24).

[11] Maria Ildefonsa Rigamonti. Ir. Mensageira da Sagrada Face: Irmã Maria Pietrina Micheli. Juiz de Fora: Editora Lar Católico, 1960 (p.9).

[12] Ibid. p.20.

[13] Apostolado da Sagrada Face. Breve explicação sobre o culto da Sagrada Face. São Paulo, 1963. Página 5.