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Estou em pecado, adianta rezar?

O pecado impõe uma barreira entre nós e Deus e muitas vezes nos vemos atemorizados pela pergunta "Estou em pecado, adianta rezar?" Entenda como a misericórdia divina atua na alma.

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Muitos fiéis, em algum momento de suas vidas, se encontram diante de uma questão profundamente perturbadora: "Estou em pecado, adianta rezar?" Esta dúvida pode surgir particularmente após a consciência nos acusar de estarmos fora da graça de Deus, em pecado mortal, pois conforme ensina a Igreja, esse estado provoca o rompimento da relação vital da alma com Deus. A sensação de estar espiritualmente "morto" ou distante de Deus pode levar a um desânimo profundo na vida de oração, criando um ciclo de afastamento ainda maior da fé e da comunhão divina.

No entanto, é crucial entender a natureza do pecado mortal, as dinâmicas da oração e como a misericórdia divina opera mesmo nas profundezas do desespero espiritual. Baseando-nos nos ensinamentos do Catecismo da Igreja Católica, e do doutor Angélico, Santo Tomás de Aquino, buscamos esclarecer se Deus ainda escuta as orações daqueles que estão em estado de pecado grave e como podem dar passos concretos em direção à reconciliação.

O que é, de fato, a Oração?

A oração é fundamental na vida cristã, servindo como o canal pelo qual podemos nos comunicar com Deus e receber Sua misericórdia e orientação. Ela é a respiração da vida espiritual, mantendo a alma viva na presença divina e no amor redentor de Deus. Como diz são João Damasceno: “A oração é a elevação da alma para Deus ou o pedido feito a Deus de bens convenientes” [1].

É preciso salientar que a verdadeira oração pede “bens convenientes”. Convenientes a quem? Para que? Convenientes para nossa salvação, que é a vontade última de Deus em nossas vidas. Ou seja, se pedirmos algo que é contrário à nossa salvação, mesmo que tenha aparência de bem, Deus não nos dará, pois o Senhor só quer o nosso bem e nos dar coisas boas, como diz Jesus:

Se vós, pois, que sois maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celeste dará boas coisas aos que lhe pedirem” (Mt 7,11).
Ao se pedir fielmente a Deus pelas necessidades da vida, por misericórdia às vezes Ele atende, às vezes não; o que seja bom para o doente mais sabe o médico que o próprio doente” [2]

Santo Tomás de Aquino também pontua algo importante para sabermos sobre a natureza da oração “a oração, afora o efeito do consolo espiritual que traz no momento em que é feita, possui dupla virtualidade quanto ao efeito futuro: a de merecer e a de impetrar” [3].O valor meritório, na linguagem de Santo Tomás, está relacionado à união daquele que ora com os méritos de Cristo, ou seja, é o valor dado à oração pela graça santificante. Por outro lado o valor impetratório é aquele dado à oração pela fé, como os pecadores que buscaram a Cristo em vida e foram curados “Tem confiança, minha filha, tua fé te salvou”(Mt 9,22).

O Pecado Mortal e a Oração

O pecado mortal, por sua natureza, separa o pecador da graça de Deus, comprometendo a relação direta e íntima que a oração requer. Isso não significa, no entanto, que as orações de um pecador são inúteis ou não são ouvidas por Deus. Pelo contrário, a misericórdia de Deus é infinita e Sua vontade de perdoar supera qualquer barreira criada pelo pecado: “Uma vez que Deus pode criar «do nada», também pode, pelo Espírito Santo, dar a vida da alma aos pecadores, criando neles um coração puro” [4]. A Igreja ensina que, enquanto o pecado mortal priva a alma da graça santificante, a oração continua sendo um meio vital para buscar o perdão e a reconciliação com Deus.

Mas a Sagrada Escritura parece confusa nesta questão, o próprio Jesus disse que veio chamar os pecadores, não os justos (cf. Mt 9,13), mas também está no Evangelho lemos que “Sabemos, porém, que Deus não ouve a pecadores, mas atende a quem lhe presta culto e faz a sua vontade.” (Jo 9,31) e no Antigo Testamento vemos que “É abominável a oração de quem fecha os ouvidos para não ouvir o que a lei exige” (Pr 28,9). Por outro lado, a disposição de Deus para ouvir as súplicas dos pecadores quando pedem perdão aparece diversas vezes nas Escrituras, como o salmo penitencial de Davi (Sl 50) e o cego que pede o perdão a Cristo (cf. Lc 18,38).

Ora santo Tomás de Aquino, ao falar da questão “A oração dos pecadores é atendida por Deus?”, responde justamente esse impasse, com base no que dissemos anteriormente, da distinção entre o valor meritório e impetratório da oração. O pecador não recebe a graça santificante e portanto está desligado dos méritos de Cristo e sua oração não tem valor meritório, mas se o pecador ainda tem fé, e pede algo favorável à sua salvação, Deus atende, não por justiça, mas por misericórdia: “Se o pecador pede algo na oração, enquanto pecador, ainda desejando pecar, Deus não o atenderá pela sua misericórdia [...]A oração do pecador que vem de um bom desejo da sua natureza, Deus atende não por justiça, porque ele tal não merece, porém por pura misericórdia” [5].

Já o demônio, autor e princípio de todo pecado, se alegra quando estamos em pecado mortal, mas alegra-se ainda mais quando por causa disso abandonamos a vida de oração, pois é como um doente que, por isso mesmo, deixa de ir ao médico. Satanás não apenas quer que pequemos (pois sabe da eficácia da confissão sacramental e que um pecado confessado é perdoado e não leva ninguém ao inferno), o inimigo quer que, pecando, tenhamos vergonha e medo de Deus e fujamos d’Ele como Adão e Eva (cf. Gn 3,8), pois ao fugirmos de Deus, largando a oração, nos isolamos da própria graça que quer nos salvar.

Uma Vida Nova em Cristo

Sabendo que Deus quer que rezemos, mesmo quando estamos em pecado, não significa que Ele quer que permaneçamos assim, pelo contrário, quer a nossa conversão e se alegrará imensamente com ela, como o pastor ao encontrar a ovelha perdida (cf. Lc 15,4-7). O Senhor também nos convida a só nos aproximarmos da Eucaristia após recebermos a reconciliação,  tanto com os irmãos (cf. Mt 5,23-24) como com Deus (cf. I Cor 11,27-29). Então de fato o movimento principal da alma em pecado mortal é pedir perdão a Deus, odiar seu próprio pecado, tomar a firme decisão de não mais pecar e procurar o mais rápido possível a confissão sacramental instituída por Cristo para o perdão dos nossos pecados (cf. Jo 20,22-23).

A Igreja ensina que Deus nunca cessa de atrair o pecador para Si, esperando que o coração endurecido se abra novamente à Sua voz. A oração, nesse contexto, é uma maneira poderosa de iniciar esse retorno a Deus. Ela permite que o indivíduo expresse contrição, um desejo sincero de mudança e um pedido de perdão. Obter o perdão das culpas é necessário para a vivência mais plena da relação com Deus:

A oração de fé não consiste somente em dizer «Senhor, Senhor!», mas em preparar o coração para fazer a vontade do Pai (cf. Mt 7,21). Jesus exorta os seus discípulos a levar para a oração esta solicitude em cooperar com o desígnio de Deus.”. [6]

Uma vez confessados os pecados, a graça nos é restituída e vivemos no estado da amizade de Deus e podemos assim sermos mais íntimos d’Ele, obtendo o valor meritório da oração, como o Senhor Jesus nos diz: “Se alguém me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos nossa morada” (Jo 14,23). Essa união com Cristo e o Pai, realizada na Eucaristia, é o alimento da vida espiritual e fonte da vida nova na graça, o destino que espera todo pecador arrependido.

Ora e qual bem maior a um pecador do que a conversão? De fato, “O pedido de perdão é o primeiro movimento da oração de petição (cf. o publicano: «Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador» Lc 18,13). É o preliminar de uma oração justa e pura” [7]. Mesmo em estado de pecado mortal, a pessoa não está completamente isolada da compaixão de Deus. Por isso, se você se encontra em pecado mortal, REZE! Peça ao Senhor a graça da conversão, do arrependimento, e busque assim que possível restaurar a amizade com Ele através da confissão.

Referências

[1] São João Damasceno, Expositio fidei, 68 apud. Catecismo da Igreja Católica. n. 2559

[2] Sto. Agostinho Sententiarum Prosperi apud. Sto. Tomás de Aquino. Suma Teológica II-II, q. 83, a. 15

[3] Sto. Tomás de Aquino. Suma Teológica II-II, q. 83, a. 15

[4] Catecismo da Igreja Católica. n. 298

[5] Sto. Tomás de Aquino. Suma Teológica II-II, q. 83, a. 16

[6] Catecismo da Igreja Católica. n. 2611

[7] Catecismo da Igreja Católica. n. 2631