Há uma bela tradição na Igreja que dedica o mês de julho a meditações sobre o Preciosíssimo Sangue de Cristo. Muitos papas endossaram o valor dessa espiritualidade para a nossa caminhada, como foi o caso de São João XXIII.
Ao aproximar-se a festa e o mês dedicados ao culto do Sangue de Cristo, preço do nosso resgate, penhor de salvação e de vida eterna, façam-na os fiéis objeto de meditações mais devotas e de comunhões sacramentais mais frequentes. [1]
Mas por que será que São João XXIII vinculou o culto ao Sangue de Cristo à prática de comunhões mais frequentes? Esse é o tema que nós abordaremos hoje. Trata-se de uma espiritualidade que nos leva ao núcleo da nossa fé.
Neste artigo, vamos primeiro visitar o Antigo Testamento. Você vai aprender que o sangue era um sinal de vida, mas tinha também um valor litúrgico. Depois nós voltaremos para o Novo Testamento, de modo a entender como o Antigo atinge a sua plenitude no Novo. Por fim, deixaremos algumas sugestões de meditação para a sua oração pessoal.
O sangue no Antigo Testamento
Não foram poucas as menções ao sangue no Antigo Testamento. Não era permitido aos judeus consumir carne com sangue, pois entendia-se que o sangue do animal era indissociável de sua vida.
Tudo quanto se move e vive vos servirá de alimento; assim como já vos dei a erva verde, entrego-vos tudo. Somente não comereis a carne com seu sangue, que é vossa vida. (Gn 9, 3-4)
O sangue era um sinal de vida. Havia até mesmo um lugar para o sangue nos atos litúrgicos da Antiga Aliança. Assim, por exemplo, Aarão devia, uma vez por ano, aspergir sangue no altar do incenso para a expiação dos pecados do povo. Era um ato sacerdotal solene, a ser repetido pelos seus sucessores.
Uma vez por ano, Aarão fará a expiação, nas pontas do altar: com o sangue da vítima pelo pecado, fará a expiação anual, ao longo de vossas gerações. Será coisa santíssima perante o Senhor (Ex 30, 10)
Quando Moisés selou a Antiga Aliança, derramou sangue sobre o altar e sobre o povo (Ex 24, 4-5). Foi um ato muito marcante pelo qual Israel se consagrava ao Senhor Deus, renunciando, assim, aos ídolos do Egito.
Pode-se também interpretar o sangue como um sinal de consagração de Israel ao Senhor, bem como sua renúncia aos ídolos do Egito. [2]
Assim era o sangue no Antigo Testamento. Por que nós nos lembramos do sangue, se já estamos na Nova Aliança? É que todo o Antigo Testamento converge para Cristo. No Senhor e em Seus mistérios essas imagens se realizam e adquirem o seu pleno sentido.
Os cristãos lêem o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado. [3]
Vejamos agora como o sangue aparece no Novo Testamento. Não se trata de negar o Antigo, mas entendê-lo à luz do Novo.
O Sangue no Novo Testamento
Assim como no Antigo Testamento, não são poucas as menções ao sangue no Novo Testamento. O seu sentido chega ao seu ápice. O próprio Jesus derramou sangue já ao oitavo dia, quando foi circuncidado (Lc 2, 21).
Na circuncisão do Menino Deus, havia uma sugestão obscura e uma alusão ao Calvário, no derramamento precoce do sangue. A sombra da Cruz já estava pairando sobre um menino de oito dias de idade. [4]
Essa foi a primeira ocasião em que o Preciosíssimo Sangue de Jesus foi derramado. Mas o Evangelho narra ainda outras seis ocasiões. É significativo que todas elas tenham ocorrido ao longo da Paixão e Morte do Senhor.
Ele teria sete derramamentos de sangue dos quais este foi o primeiro; os seguintes foram: a agonia no jardim; a flagelação; a coroa de espinhos; o caminho da Cruz; a crucificação; e a perfuração lateral de Seu corpo. [5]
Veja como é grande o amor de Cristo por nós! Ele não nos amou apenas com palavras, com a entrega total de Sua Vida. Derramando o próprio sangue voluntariamente, o Senhor Jesus realizou o ato visível de amor da história da humanidade.
O sinal do “sangue derramado”, como expressão da vida doada de modo cruento em testemunho do amor supremo, é um ato da condescendência divina à nossa condição humana. Deus escolheu o sinal do sangue, porque nenhum outro sinal é tão eloquente para indicar o envolvimento total da pessoa. [6]
Vimos até aqui que o sangue tinha um valor litúrgico na Antiga Aliança e que Cristo derramou Seu Preciosíssimo Sangue por amor a nós. Mas nós sabemos que Jesus ressuscitou. Veremos agora o sangue na Nova e Eterna Aliança.
“Tomai e Bebei”
Já vimos que, no tempo do Antigo Testamento, os sacerdotes derramavam o sangue sobre o altar para expiar os pecados. É importante saber que esse derramamento de sangue era um ato sacerdotal. Mas de onde vinha o sangue? Da vítima oferecida.
Com essas referências do Antigo Testamento em mente, nós podemos tentar entender melhor estas palavras que o Senhor pronunciou solenemente quando estabeleceu a Nova e Eterna Aliança:
E tomando na mão o cálice, deu graças e passou-o a eles, dizendo: “Bebei dele todos, pois este é o meu sangue da nova aliança, que é derramado em favor de muitos, para o perdão dos pecados.” (Mt 26, 27-28).
Sangue da aliança é uma expressão com um sentido bem preciso. Foram as palavras que Moisés disse quando selou a Antiga Aliança entre Deus e Israel. O Senhor Jesus retomou-as, levando à plenitude o seu sentido, pois a Antiga Aliança apontava para a Nova e Eterna Aliança.

A expressão “o sangue da aliança” é retirada de Ex 24, 8, quando Deus estabeleceu uma aliança de amor e comunhão com Israel através do sacrifício. O consumo de sangue - que sempre foi proibido na Antiga Aliança (Lv 17, 11-12) - é agora parte principal da Nova, já que comunica a vida divina de Jesus (Jo 6, 53). [7]
Observe que o Senhor Jesus não fez como os sacerdotes da Antiga Aliança, que entravam no santuário para oferecer o sangue de animais. Ele entrou no Santuário invisível, como sacerdote, mas para oferecer o próprio sangue em uma Nova Aliança.
Ele entrou no Santuário através de uma tenda maior e mais perfeita, não feita por mãos humanas, nem pertencendo a esta criação. Ele entrou no Santuário, não com o sangue de bodes e bezerros; mas com seu próprio sangue, e isto, uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna. (Hb 9, 11-12)
Jesus é, ao mesmo tempo, o sacerdote e a vítima da Nova e Eterna Aliança. O Preciosíssimo Sangue de Cristo foi derramado pela nossa salvação; e está acessível no Sacramento da Eucaristia. O Senhor oferece a Sua vida por nós de modo bem concreto!
Derramando o próprio sangue, Jesus é, ao mesmo tempo, o sacerdote e a vítima de sacrifício oferecida na Nova Aliança; sua oferenda sacerdotal é apresentada de um modo não sangrento no sacramento da Eucaristia e nos assegura a remissão dos pecados. [8]
Mas lembremos: o Sangue de Cristo não pode ser dissociado de Sua Pessoa. Jesus é o Verbo de Deus encarnado, portanto em Seu sangue somos tocados pelo amor concreto do próprio Deus.
O mistério de semelhante doação encontra a sua nascente na vontade salvífica do Pai celeste e a sua realização na obediência filial de Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, através da obra do Espírito Santo. A história da nossa salvação traz, portanto, a marca e o selo indelével do amor trinitário. [9]
Uma Grande Esperança
A meditação do Preciosíssimo Sangue de Cristo é uma ocasião para nos perguntarmos como é que comungamos. Será que discernimos bem a importância de receber a comunhão somente em estado de graça? E como será que nós nos preparamos para receber o Sangue do Senhor?
Nem sempre estamos aptos a receber o Sangue de Cristo ressuscitado em nossas veias, mas sempre somos amados pelo Senhor. Esta é a nossa grande esperança: o Senhor nos ama até o fim. A meditação sobre o mistério do Sangue de Cristo deve nos conduzir a uma maior esperança.
O sangue de Cristo é o penhor do amor fiel de Deus pela humanidade. Fixando as chagas do Crucificado, cada homem, também em condições de extrema miséria moral, pode dizer: Deus não me abandonou, ama-me, deu a vida por mim; e desta forma reencontrar esperança. [10]
Sangue de Cristo, salvai-nos!
Referências:
[1] Papa João XXIII. Carta Apostólica ‘Inde a Primis’, 8.
[2] Scott Hahn & Curtis Mitch. O Livro do Êxodo - Cadernos de Estudo Bíblico. Campinas, SP: Ecclesiae, 2016. p. 85.
[3] Catecismo da Igreja Católica, 129.
[4] Fulton Sheen. Vida de Cristo. Vida de Cristo. Volume I. Rio de Janeiro: Petra, 2018. p. 43.
[5] Ibid.
[6] Papa João Paulo II. Discurso às Associações Dedicadas ao Culto do Sangue de Cristo, aos Sócios da Avis e a Vários Grupos de Fiéis. 1° de Julho de 2000.
[7] Scott Hahn & Curtis Mitch. O Evangelho de São Mateus- Cadernos de Estudo Bíblico. Campinas, SP: Ecclesiae, 2014. p. 129.
[8] Ibid.
[9] Papa João Paulo II. Discurso às Associações Dedicadas ao Culto do Sangue de Cristo, aos Sócios da Avis e a Vários Grupos de Fiéis. 1° de Julho de 2000.
[10] Papa Bento XVI. Ângelus. 05 de julho de 2009.