O relato dos Santos Inocentes no Evangelho de São Mateus (2, 16-18) é profundamente comovente. Herodes, dominado pelo medo de perder seu trono para o “rei dos judeus” anunciado pelos Reis Magos, ordenou a execução de todos os meninos de até dois anos em Belém e arredores. Esse massacre, que visava eliminar Jesus, é um dos episódios mais cruéis das Escrituras.
Por que temes, Herodes, ao ouvir que nasceu um Rei? Ele não veio para te destronar, mas para vencer o demônio. Como não compreendes isso, tu te perturbas e te enfureces; e, para que não escape o único menino que procuras, tens a crueldade de matar tantos outros. [1]
Embora tenha ocorrido há mais de dois milênios, essa tragédia encontra um paralelo em nossa época. A diferença é que, hoje, o massacre dos inocentes não acontece em pequenas aldeias, mas em clínicas e hospitais, no ventre materno, que deveria ser o lugar mais seguro para uma nova vida.
Assim como os bebês de Belém, os inocentes de hoje não têm voz para clamar por socorro. Dependem de nós, cristãos, para denunciar essa barbárie e agir em defesa da vida.
O aborto: o verdadeiro genocídio moderno
Os dados sobre o aborto são estarrecedores. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 73 milhões de abortos são realizados anualmente no mundo. Esse número equivale a 200 mil bebês mortos por dia, ou mais de 8 mil por hora. Em outras palavras, enquanto você lê este parágrafo, dezenas de vidas inocentes são aniquiladas.
Na China, por exemplo, onde políticas de controle populacional restringiram por anos o número de filhos permitidos por família, [2] o aborto foi amplamente incentivado, resultando em centenas de milhões de procedimentos. Em 2008, havia uma estimativa de 13 milhões de abortos realizados anualmente no país, e aproximadamente 10 milhões de pílulas abortivas foram vendidas. [3] Já em países como os Estados Unidos, o aborto tornou-se um símbolo de “liberdade individual”.
Ao longo da história, os genocídios foram marcados pelo ódio e pela discriminação. O aborto moderno, porém, apresenta uma particularidade assustadora: ele é realizado com o consentimento da sociedade e até mesmo celebrado em alguns setores como um “direito.” Essa aceitação demonstra a gravidade da crise espiritual e moral que vivemos.
Muitos movimentos abortistas justificam a prática com argumentos de saúde pública ou direitos das mulheres. No entanto, ao eliminar sistematicamente vidas humanas em seus estágios mais vulneráveis, o aborto reflete uma lógica de desumanização que vai contra a própria essência do Evangelho.
Os novos Herodes: o aborto tornou-se indústria
O aborto não é apenas um fenômeno isolado, mas uma indústria global. Grandes organizações, como a Planned Parenthood, movimentam bilhões de dólares todos os anos, promovendo o aborto como solução para questões sociais e médicas. Além disso, há registros de comercialização de tecidos fetais para pesquisas científicas, um comércio que lembra as práticas mais desumanas da história.
Governos e fundações internacionais, como a Fundação Bill e Melinda Gates e a Fundação Rockefeller, financiam eventos e discussões sobre o controle de natalidade, que, naturalmente, desembocam em campanhas pró-aborto, especialmente em países em desenvolvimento.
Organizações como a USAID (agência de ajuda externa dos Estados Unidos) e governos de países europeus, como Suécia e Noruega, frequentemente financiam programas de saúde reprodutiva em países em desenvolvimento. Esses programas podem incluir acesso ao “aborto seguro” onde permitido por lei.
Sob o pretexto de “planejamento familiar,” essas iniciativas perpetuam uma cultura de morte que reduz a vida humana a uma questão de conveniência.
A “Cultura de Morte”
Na Evangelium Vitae, São João Paulo II apresenta o termo “cultura de morte” como um fenômeno profundamente enraizado em uma visão distorcida da liberdade humana e da dignidade da pessoa.
O Santo Padre denuncia uma mentalidade que prioriza o individualismo extremo, o utilitarismo e a busca do prazer acima do valor intrínseco da vida. Essa cultura promove o desprezo pela vida humana nas fases mais vulneráveis, como no ventre materno ou no fim da existência, justificando práticas como o aborto e a eutanásia.
Segundo o Papa, essas atitudes resultam de uma ruptura com Deus, o Criador, e da rejeição da lei moral natural, gerando uma sociedade que trata a vida como algo descartável, submetido a critérios egoístas ou econômicos.
(...) estamos perante uma realidade mais vasta que se pode considerar como verdadeira e própria estrutura de pecado, caracterizada pela imposição de uma cultura anti-solidária, que em muitos casos se configura como verdadeira “cultura de morte”. É ativamente promovida por fortes correntes culturais, econômicas e políticas, portadoras de uma concepção ‘eficientista’ da sociedade.
Olhando as coisas deste ponto de vista, pode-se, em certo sentido, falar de uma guerra dos poderosos contra os débeis: a vida que requereria mais acolhimento, amor e cuidado, é reputada inútil ou considerada como um peso insuportável, e, consequentemente, rejeitada sob múltiplas formas. [4]
Além disso, João Paulo II enfatiza que a “cultura de morte” não se limita a decisões individuais, mas é amplificada por sistemas sociais, jurídicos e políticos que institucionalizam tais práticas, muitas vezes sob o pretexto de progresso ou direitos humanos.
Ele alerta para a manipulação da linguagem, que disfarça a gravidade desses atos, apresentando-os como escolhas legítimas ou avanços científicos. Em contraposição, o Papa chama os cristãos a promoverem uma “cultura de vida”, baseada no respeito incondicional à dignidade de toda pessoa humana e na construção de uma civilização do amor, que defende os mais frágeis e valoriza a vida em todas as suas etapas.
A luta espiritual por trás do aborto
As Escrituras ensinam que o demônio é o “pai da mentira” e o instigador de todo pecado (Jo 8, 44). Sua aversão à vida humana é especialmente intensa contra os inocentes, que refletem a pureza e santidade de Deus. Por isso, o aborto não é apenas um problema social ou político, mas uma batalha espiritual de grandes proporções.
Vejamos com mais atenção: a destruição de um bebê no ventre materno é um ataque direto à imagem de Deus no homem. Cada vida humana concebida no ventre materno carrega em si o reflexo da geração eterna que acontece no seio da Santíssima Trindade – o Pai que gera eternamente o filho na força do Seu amor, o Espírito Santo.
Além disso, todo ser humano, ao ser concebido, traz consigo uma missão única no plano divino. O aborto, portanto, não é apenas a interrupção de uma vida (o que por si só já é trágico), mas uma tentativa de impedir a realização desse plano desde a origem.
Em cada aborto, é como se Satanás gritasse desafiadoramente: “Aqui não! Aqui a vontade de Deus não se cumprirá. A vitória é minha!”
Os Santos Inocentes de ontem e os bebês abortados de hoje
Os Santos Inocentes foram reconhecidos como mártires porque perderam suas vidas por causa de Cristo, mesmo sem saberem. De maneira análoga, os bebês abortados são vítimas inocentes de um mundo que rejeita Deus, que odeia a ordem divina, que quer matar Cristo e Sua soberania entre nós. Embora não tenham consciência do sacrifício que lhes é imposto, suas vidas perdidas clamam por justiça diante do trono divino.
Podemos projetar, tanto aos Santos Inocentes quantos aos bebês abortados, o clamor dos mártires a Deus em Apocalipse 6, 10: “Até quando, ó Senhor, santo e verdadeiro, tardarás a fazer justiça, vingando o nosso sangue contra os habitantes da terra?”
O nosso chamado: defender a vida com fé e coragem
Diante dessa realidade, nós, católicos, temos o dever de nos posicionar claramente contra o aborto. Isso inclui não apenas a denúncia dessa prática, mas também a oferta de apoio concreto às mulheres em situação de vulnerabilidade. Em toda cidade deve haver um grupo de bons católicos que realizam esse trabalho.
Centros de apoio à gravidez, campanhas de conscientização e ações pastorais podem salvar vidas e transformar corações. É essencial também que leigos equilibrados e que buscam a santidade, se envolvam politicamente, resistindo às leis que promovem o aborto e trabalhando pela construção de uma cultura da vida.
Agora, é importante recordar que a luta contra o aborto não será vencida apenas por meios humanos. Como em todas as grandes batalhas espirituais, a oração, o jejum e a penitência são armas indispensáveis. Somos todos chamados a jejuar, rezar o Rosário e oferecer nossas vidas em reparação pelos pecados cometidos contra os inocentes.
Um brado pela vida
Os Santos Inocentes e os bebês abortados são testemunhos silenciosos de duas épocas marcadas pela rejeição a Deus e à vida. Embora separados por séculos, ambos os grupos nos lembram do primado do amor a Deus, da sacralidade da vida humana e da necessidade de lutar por sua defesa.
Cristo faz suas legítimas testemunhas aqueles que ainda não falam. Eis como reina aquele que veio para reinar. Eis como já começa a conceder a liberdade aquele que veio para libertar, e a dar a salvação aquele que veio para salvar. [5]
Que possamos ouvir o clamor silencioso dos inocentes e responder com coragem e amor, proclamando ao mundo que cada vida é um dom inestimável de Deus. Ao fazê-lo, estaremos não apenas defendendo os mais vulneráveis, mas também testemunhando a verdade do Evangelho em um mundo de mentiras e que tanto precisa dela.
Dos Santos Inocentes cantemos o louvor. A terra os perde e chora, recebe-os o Senhor. [6]
Santos Inocentes, rogai por nós e por todas as pessoas envolvidas em casos de aborto.
Referências:
[1] São Quodvultdeus, bispo. Sermo 2 de Symbolo: PL 40,655. Século V.
[2] A política do filho único perdurou na China de 1979 a 2015.
[3] The Guardian: Estatísticas do aborto na China.
[4] São João Paulo II. Evangelium Vitae. nº 12.
[5] São Quodvultdeus, bispo. Sermo 2 de Symbolo: PL 40,655. Século V.
[6] Primeira estrofe do Hino do Ofício das Leituras da Festa dos Santos Inocentes, Mártires.