Disse o Papa Bento XVI:
(...) o cristianismo é a “religião da Palavra de Deus”, não de “uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e vivo” [Jesus]. Por conseguinte, a Sagrada Escritura deve ser proclamada, escutada, lida, acolhida e vivida como Palavra de Deus. [1]
A Palavra de Deus é, antes de tudo, uma Pessoa viva e ativa, presente entre nós. Quando falamos da “Palavra de Deus”, não estamos nos referindo apenas ao conjunto de textos das Escrituras, mas ao próprio Jesus, a Palavra Eterna.
A Bíblia é sagrada precisamente por isso: porque, inspirada pelo Espírito Santo, testemunha a Cristo. Toda a Bíblia se refere a Jesus e Sua obra redentora. Ler as Escrituras é, portanto, abrir o coração para receber Jesus, permitindo que Ele nos conduza ao íntimo de Seu amor.
Reconhecer essa verdade muda radicalmente a maneira como nos aproximamos da Bíblia. Não podemos reduzir a Palavra de Deus a um simples livro que contém ensinamentos religiosos, filosofia, história ou regras morais. Embora a Sagrada Escritura contenha todos esses elementos, sua essência vai além de qualquer categoria de conhecimento. Ela é uma porta aberta para o mistério de Deus. Quando nos aproximamos das Escrituras com essa consciência, nossa leitura se transforma em um ato de fé e de abertura para a ação de Deus em nós.
Com isso bem estabelecido, podemos agora nos perguntar: a Bíblia é realmente inspirada por Deus?
Se Deus é amor, Ele precisava Se comunicar
De fato, para todo cristão, a Bíblia não é apenas um livro escrito por mãos humanas, mas um texto sagrado, que contém as palavras que Deus quis revelar à humanidade.
Para começarmos a analisar a origem divina das Escrituras, pensemos o seguinte: se Deus existe e é amor, é natural que Ele desejasse Se comunicar com Suas criaturas amadas. O amor, por sua própria natureza, busca ser compartilhado e conhecido, e assim Deus, por ser a infinita bondade, precisava revelar aos homens o Seu amor.
Tal revelação não poderia ser oculta ou distante; ela deveria ser clara e acessível, para que todos pudessem compreender a profundidade desse amor divino, incondicional. Como um pai que ensina e cuida de seu filho, Deus-Amor deveria orientar a humanidade, oferecendo Sua palavra, Seu exemplo e Suas leis para que os homens pudessem viver conforme Sua vontade, em comunhão com Ele.
Além de ensinar, Deus-Amor também deveria revelar Sua proteção para com Seus filhos. Quando o ser humano, frágil e exposto ao mal, se coloca em risco de morte eterna pelo pecado, Deus, que é amor, não poderia Se manter indiferente. Pelo contrário, Ele deveria intervir. E foi isso que Deus fez, primeiramente, pelas Escrituras, na aliança com o povo eleito; depois, enviando o Seu Filho como o Salvador, resgatando a humanidade da perdição e oferecendo a graça da redenção.
Partindo desse princípio, podemos reconhecer tranquilamente que a Escritura é a própria Palavra de Deus que nos foi dada como um dom de Seu amor.
Inspiração divina
Quando falamos de “Inspiração Divina” da Bíblia, estamos nos referindo à crença de que Deus, por meio do Espírito Santo, guiou os autores humanos na composição dos textos. Essa inspiração não significa que Deus ditou palavra por palavra, mas que Ele garantiu que os escritores transmitissem, de maneira fiel e autêntica, Sua mensagem para a humanidade, utilizando suas próprias personalidades, estilos e contextos culturais.
A doutrina da inspiração está claramente expressa em algumas passagens bíblicas. Por exemplo, o Apóstolo São Paulo escreve: “Toda a Escritura é inspirada por Deus, e útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça. Por ela, o homem de Deus se torna perfeito, capacitado para toda boa obra” (2 Tm 3, 16-17)
A palavra “inspirada” aqui significa, no texto grego original, “soprada por Deus”, o que indica que as Escrituras são o resultado da ação direta do Espírito Santo, que as insuflou com a Verdade.
Além disso, em São Pedro, lemos:
“Jamais uma profecia foi proferida por efeito de uma vontade humana. Homens inspirados pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus” (2 Pd 1, 21).
Este texto reforça a ideia de que os autores humanos da Bíblia não escreviam por conta própria, mas sob a influência e a direção de Deus. Também, a constituição dogmática Dei Verbum, do Concílio Vaticano II, explicita bem a natureza da inspiração divina das Escrituras:
As coisas reveladas por Deus, contidas e manifestadas na Sagrada Escritura, foram escritas por inspiração do Espírito Santo. Com efeito, a Santa Mãe Igreja, segundo a fé apostólica, considera como santos e canônicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo (cfr. Jo. 20,31; 2 Tim. 3,16; 2 Pd. 1, 19-21; 3, 15-16), têm Deus por autor, e como tais foram confiados à própria Igreja. Todavia, para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo Ele neles e por eles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria. [2]
E assim, como tudo quanto afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras. Por isso, «toda a Escritura é divinamente inspirada e útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as obras boas (Tim. 3, 7-17 gr.).
A ação divina e a humanidade dos escritos bíblicos
É importante entender que, embora a Bíblia seja inspirada por Deus, ela também reflete a humanidade de seus autores. Cada livro bíblico foi escrito em um contexto histórico específico, por pessoas com diferentes culturas, línguas e experiências de vida. Isso explica as variações de estilo literário que encontramos nas Escrituras: poesia, narrativa histórica, códigos legais, profecia, cartas e textos de sabedoria.
Por exemplo, os evangelistas que escreveram os quatro Evangelhos (São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João) relataram os mesmos eventos centrais da vida de Jesus, mas de perspectivas diferentes. Isso não compromete a verdade histórica e teológica do que é transmitido, mas enriquece a compreensão da obra de Nosso Senhor.
O fato de haver diferentes estilos e ênfases demonstra que Deus trabalhou através das capacidades humanas e respeitou a liberdade dos escritores, sem comprometer a fidelidade deles à mensagem divina.
A autoridade da Bíblia
A inspiração divina da Bíblia está diretamente ligada à sua autoridade. Para a Igreja, a Bíblia é considerada uma palavra inequívoca em matéria de fé e moral. Além disso, ela é a fonte primária da doutrina e o eixo central da liturgia, da pregação e da vida de oração.
A Escritura é única entre todos os textos religiosos, pois, ao ser de origem divina, transmite verdades absolutas sobre Deus, o homem e a salvação. Entretanto, a autoridade da Bíblia não deve ser vista como algo rígido ou desconectado da realidade. Ao contrário, ela foi dada por Deus para iluminar nossa natureza humana decaída pelo pecado, para responder às grandes questões de nossa existência e guiar-nos na luta espiritual na direção de Deus.
O Catecismo da Igreja Católica, por exemplo, afirma que “os livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro, a verdade que Deus quis que fosse consignada nas sagradas Letras em ordem à nossa salvação” (CIC 107).
O testemunho de Jesus sobre as Escrituras
Um dos argumentos mais poderosos em favor da inspiração divina da Bíblia é o testemunho de Nosso Senhor. Durante Seu ministério público, Ele fez várias referências às Escrituras judaicas (o Antigo Testamento), tratando-a como “Palavra de Deus”. Em várias ocasiões, Ele citou textos bíblicos para ensinar, repreender ou corrigir as pessoas.
Em São Mateus, capítulo 4, quando tentado por Satanás no deserto, o Senhor responde: “Está escrito: ‘Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus’”. Jesus está citando Deuteronômio (8, 3), demonstrando que Ele reconhecia a autoridade das Escrituras como a Palavra de Deus.
Além disso, em São Lucas (24, 27), após a Ressurreição, Jesus explica a dois discípulos no caminho de Emaús como as Escrituras (a Lei, os Profetas e os Salmos) falavam sobre Ele, mostrando que o Antigo Testamento estava centralmente relacionado ao plano de redenção de Deus por meio de Cristo. Como bem definiu Santo Agostinho: “O Novo [Testamento] está oculto no Antigo, e o Antigo está patente no Novo”. [3]
Se Jesus, que é o Verbo Encarnado, confirmou a veracidade e a autoridade das Escrituras, temos razão para crer que a Bíblia – não só nos escritos dos Apóstolos (o Novo Testamento), mas também no Antigo Testamento – é realmente inspirada por Deus e essencial para nossa compreensão da salvação.
A Tradição e a interpretação da Bíblia
É importante destacar que o discernimento para entender o que Deus quis dizer na Sagrada Escritura deve estar sempre acompanhado de uma correta interpretação.
Desde os primeiros séculos do cristianismo, os fiéis sempre acreditaram que a Escritura foi confiada à Igreja para ser interpretada à luz de seu Magistério. Isso significa que a Escritura não pode ser lida de forma isolada, mas dentro do contexto da comunhão dos Bispos, sucessores legítimos dos Apóstolos. O príncipe dos Apóstolos nos confirma isso:
“Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de interpretação pessoal” (2 Pd 1, 20)
Muitas passagens bíblicas são ricas em simbolismos e significados complexos, e a orientação da Igreja ao longo dos séculos tem sido essencial para ajudar os fiéis a discernirem o sentido correto das Escrituras.
Precisamos sempre recordar uma grande verdade: o mesmo Espírito que inspirou os autores sagrados é Quem inspira a interpretação dos textos pelo Magistério. Jesus disse aos Apóstolos (e tão somente a eles):
“Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, ele vos ensinará toda a verdade” (Jo 16, 13).
Sem uma interpretação alicerçada no Magistério da Igreja, composto pelos legítimos sucessores dos Apóstolos e seus discípulos, pode haver o risco de deturpar ou mal compreender o sentido bíblico. Mais uma vez, fiquemos com Santo Agostinho que, no século IV, disse: “Eu não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade da Igreja Católica”. [4]
A resposta da fé
Por fim, a crença de que a Bíblia é realmente inspirada por Deus é, em última instância, uma questão de fé. Somente através da fé, os cristãos reconhecem que Deus, em Sua providência, Se revelou à humanidade de maneira concreta e compreensível, usando também a Escritura como veículo dessa revelação. Essa fé do povo de Deus é sustentada pela própria experiência da vida, pela Tradição da Igreja e pela razoabilidade da coerência espiritual das Escrituras.
O mundo pode falar o que quiser, mas nós, cristãos, experimentamos a força e a eficácia da Palavra de Deus em nossas vidas cotidianas. Por meio da leitura das Escrituras, encontramos orientação, conforto, correção e o caminho para uma vida mais próxima de Deus. A transformação que a Sagrada Escritura opera na vida de incontáveis pessoas ao longo da história é um testemunho poderoso de sua origem em Deus.
Fonte de vida e amor sem fim
Jesus, a Palavra viva, está ao nosso alcance, constantemente Se revelando através das Escrituras. Ele nos convida a uma relação mais íntima com Seu amor, Sua fidelidade. Cada vez que lemos as Escrituras, somos chamados a permitir que o Senhor viva em nós, nos molde à Sua imagem e nos leve à plenitude da nossa vocação à santidade.
Por isso, leiamos a Bíblia com humildade e reverência, não apenas como um texto, mas como um “lugar” onde encontramos o próprio Deus encarnado. Através dela, Jesus continua a nos ensinar, corrigir, curar e amar.
A Palavra de Deus é viva; ela não é uma mensagem estática do passado, mas uma realidade que age continuamente no presente. Conhecer a Palavra de Deus, então, é muito mais do que um exercício de leitura. É uma experiência de comunhão com Cristo, uma oportunidade de ser tocado por Ele e de abrir o coração à Sua graça transformadora.
Sem dúvida, a Bíblia por vir do coração da Santíssima Trindade, é uma fonte inesgotável de sabedoria, verdade, vida e amor. Rezemos juntos:
“De todo o coração eu vos procuro; não permitais que eu me aparte de vossos mandamentos. Guardo no fundo do meu coração a vossa palavra, para não vos ofender”. (Sl 118, 10-11)
Referências
[1] Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini. Parte I. nº 7.
[2] Constituição Dogmática Dei Verbum - Sobre a Revelação Divina, Capítulo III, nº1.1.
[3] Quaestiones in Heptateucumt 2, 73: CCL 33. 106 (PL 34, 623); cf. II Concílio do Vaticano, Const. dogm. Dei Verbum, 16: AAS 58 (1966) 825.
[4] Contra a Carta de Mani, Capítulo 5, nº 6.