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Aprenda a jejuar como um católico

Pelo jejum dominamos a carne e suas desordens e nos tornamos mais próximos de Deus nos associando os sofrimentos de Cristo.

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Ouvimos muito no meio católico, principalmente próximo da quaresma, a respeito do jejum. Diversas vozes e influenciadores dentro e fora da internet falam sobre como eles fazem seus jejuns, tanto por motivos religiosos quanto de saúde ou até estética. Mas afinal, sabemos o que é o jejum segundo o que ensina a Santa Mãe Igreja? Ele é igual ao jejum dos nutricionistas e influenciadores de saúde? Posso fazer jejum de fofoca ou de redes sociais? Vamos entender um pouco mais a respeito desta prática tão importante à luz da Escritura, Tradição e Magistério da Igreja.

Jejum não é simples abstinência

A primeira definição que precisamos ter é a diferença entre jejum e abstinência, duas práticas frequentemente confundidas. De forma simples, abstinência tem sua raiz em “abster” ou seja, privar-se de algo, no caso nos abstemos principalmente de alimentos como a carne em todas as refeições por um período determinado. Já o jejum é a privação completa ou parcial de qualquer alimento por um certo tempo.

Ao fim e ao cabo, ambos jejum e abstinência têm um objetivo e eficácia muito similares, então muitos autores espirituais acabam falando simplesmente do “jejum”, em coisas que se aplicariam tanto ao jejum quanto à abstinência. É justo ressaltar que o jejum é mais estrito, logo também mais eficaz se realizado da forma correta, mas ambas as práticas têm sua importância e lugar dentro da prática do fiel católico.

Por que Jejuamos?

Santo Tomás de Aquino, expõe três principais finalidades para a prática de jejum:

Primeiro, para conter as concupiscências da carne . Por isso, são Jerônimo diz que ‘sem Ceres e Baco, Vênus esfria’, isto é, na abstinência de comida e bebida, a luxúria arrefece. Em segundo lugar, jejua-se para elevar mais livremente a alma à contemplação de realidades sublimes. Por isso, está no livro de Daniel que ele, após o jejum de três semanas, recebeu revelação de Deus.  Enfim, para satisfazer pelos nossos pecados.”. [1]

Muitos homens e mulheres dos dias de hoje podem duvidar disto que era certo aos antigos, ou ainda questionar se essas práticas “antiquadas” como o jejum não tem mais lugar na Igreja atualmente, usando até das Escrituras que dizem “o Senhor não se alegra com os sacrifícios” (Os 6,6) e ainda nos lábios de Nosso Senhor “Podem porventura jejuar os convidados das núpcias, enquanto está com eles o esposo? Enquanto têm consigo o esposo, não lhes é possível jejuar” (Mc 2,19). Oram, se Jesus, o Esposo, está conosco, por que devemos jejuar? Nossa penitência poderia ser só espiritual, nossa adoração em “espírito e verdade”? (Jo 4,23). A isto São Paulo VI responde:

A verdadeira penitência, no entanto, não pode prescindir do ascetismo físico. Todo o nosso ser na verdade, corpo e alma, deve participar ativamente neste ato religioso no qual a criatura reconhece a santidade e majestade divinas. A necessidade da mortificação da carne também fica clara se considerarmos a fragilidade de nossa natureza, na qual, desde o pecado de Adão, carne e espírito têm desejos antagônicos. Este exercício de mortificação - muito diferente de qualquer forma de estoicismo - não implica a condenação da carne que aos filhos de Deus  foi permitido assumir. Ao contrário, a mortificação visa a ‘libertação’ do homem, que muitas vezes se encontra, por conta da concupiscência, quase que acorrentado aos próprios sentidos. Através do ‘jejum corporal’ o homem retoma suas forças e a ferida infligida à dignidade de nossa natureza pela intemperança é curada pela medicina da abstinência salutar. [2]

Mais recentemente ainda, em uma de suas mensagens quaresmais, o papa Bento XVI compara o jejum com o mandato de Deus em Gênesis: “Podes comer o fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás” (Gn 2, 16-17). Neste sentido, como disse o papa “o jejum é de grande ajuda para evitar o pecado e tudo o que ele induz” [3] e citando São Basílio: “O ‘não comas’ é, portanto, a lei do jejum e da abstinência”, e uma ordem divina, cumprida pelo próprio Senhor antes de iniciar seu ministério público, “Jejuou quarenta dias e quarenta noites.” (Mt 4, 2).

Jejum não é Dieta

O tema da saúde alimentar e dietética está em alta nos últimos anos e tem seu propósito e benefícios, mas as práticas de jejum (chamado geralmente neste contexto de jejum intermitente) e abstinência de certos alimentos, mesmo que exteriormente similares às práticas religiosas do jejum e abstinência, não são iguais.

O cerne do jejum católico está na prática de nos privarmos de alimentos, quando esta é unida ao propósito de purificar a alma, elevar os sentidos, submeter a carne ao espírito, e tornar o coração contrito e humilhado. Portanto, devemos dizer com santo Tomás que “o jejum é evidentemente um ato de virtude” [4], ou seja, é uma “atitude firme, disposição estável, perfeição habitual da inteligência e da vontade, que regula os nossos atos, ordena as nossas paixões e guia o nosso procedimento segundo a razão e a fé” [5].

Como virtude, o jejum é uma prática com seu fim ordenado para Deus, um exercício da inteligência e da vontade. Com isso, dizemos que deixar de comer com o objetivo de emagrecer ou ter uma vida mais saudável é humanamente louvável mas é somente quando este ato é guiado tanto pela fé quanto pela razão, buscando unir o penitente aos sofrimentos do Senhor, que o jejum tem as suas eficácias como comentamos acima. Concluindo novamente com santo Tomás “portanto, deve-se dizer que o jejum propriamente dito está em nos privarmos de alimentos. Metaforicamente, porém, consiste em nos abstermos de tudo o que é nocivo, como é, em grau máximo, o pecado” [6].

O Jejum como Ensina a Igreja

Como então devemos viver o jejum na prática? O Código de Direito Canônico, a lei eclesiástica Católica, aponta como dever grave a todo católico praticar a penitência durante o período da quaresma e em todas as sextas feiras do ano (solenidades do calendário litúrgico exclusive). Deve-se observar a abstinência de carne em todas as sextas feiras do ano (solenidades do calendário litúrgico exclusive), e para os fiéis entre 18 e 60 anos o jejum  e abstinência na Quarta Feira de Cinzas e na Sexta Feira Santa. Estes dias de penitência são para que “os fiéis se dediquem de modo especial à oração, façam obras de piedade e caridade, renunciem a si mesmos, cumprindo ainda mais fielmente as próprias obrigações e observando principalmente o jejum e abstinência” [7].

A abstinência obrigatória é principalmente de carne de animais de sangue quente, por isso, peixes, frutos do mar, e similares não são considerados carne. Todavia, no Brasil, a abstinência de carne pode ser substituída nas sextas feiras, exceto a sexta-feira Santa, por um ato de piedade como a oração do rosário ou da via-sacra e participação da santa missa, ou ainda obras de caridade, como realizar uma doação substanciosa para um necessitado, dedicar uma parte do seu tempo para visitar um doente necessitado de atenção, etc. [8]

o jejum, consiste em fazer uma única refeição completa no dia, podendo fazer duas pequenas refeições que juntas não equivalem a uma refeição completa. Este jejum, chamado de jejum canônico, é aquele obrigatório aos fiéis entre 18 e 60 anos na Quarta-feira de Cinzas e Sexta-feira Santa. No entanto, existem outros tipos de jejum, aconselhados e praticados pelos santos, salientando o jejum completo, em que o fiel bebe apenas água no dia, ou então come apenas pão e bebe água. É evidente que estes tipos de jejum devem ser ordenados pelo bom senso, “a reta razão também não tira o alimento a ponto de tornar o homem incapacitado para cumprir o próprio dever” [9]. E além dos dias de obrigação que são apenas dois ao ano, convém jejuar também na preparação para grandes solenidades da Igreja, por uma intenção especial, ou ainda para alcançar a libertação de um vício.

Só o jejum não basta

Devemos ressaltar novamente que o aspecto principal da penitência não é tanto o ato quanto a inclinação da inteligência e da vontade no esforço de dominar a carne, então a Igreja, nas palavras do papa Paulo VI “quer indicar a tradicional tríade ‘oração - jejum - caridade’, como meio fundamental de cumprir com os preceitos divinos de penitência” [10]. Sem oração, o jejum se torna uma “dieta” e sem caridade, ele se torna frio e carente do amor a Deus que se manifesta em serviço ao próximo.

Considerando tudo o que vimos, convém ainda nos lembrar que os jejuns “não vão contra a liberdade dos fiéis; antes, servem para impedir a servidão do pecado, que contraria a liberdade espiritual” [11]. Então antes de cairmos no frio farisaísmo de cumprir preceitos pela simples obrigação, devemos nos lembrar do porquê jejuamos, pois este está ligado intimamente ao “como” jejuamos. Busquemos então, como Ester, jejuar em preparação para nos encontrarmos com o Rei (cf. Est 4, 16).

Referências

[1] Sto. Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 147, 1

[2] S. Paulo VI. Constituição Apostólica Paenitemini. cap. II

[3] SS. Bento XVI. Mensagem para a Quaresma de 2009

[4] Sto. Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 147, 1

[5] Catecismo da Igreja Católica n. 1804

[6] Sto. Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 147, 2

[7] Código de Direito Canônico cân. 1249

[8] Cf. Código de Direito Canônico apêndice quanto aos cân. 1251-1253

[9] Sto. Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 147, 1

[10] S. Paulo VI. Constituição Apostólica Paenitemini. cap. III

[11] Sto. Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 147, 3