A cada ano, a Igreja nos convida a mergulhar em um tempo de graça e renovação: a Quaresma. Mais do que uma simples tradição, esses 40 dias são um chamado à conversão, à luta contra o pecado e à preparação para a Páscoa do Senhor. Mas como viver bem esse período? O que significa, de fato, fazer penitência?
Neste artigo vamos explicar o sentido da penitência e ao final dar várias sugestões de penitências que você pode praticar nesta quaresma.
A quaresma na Igreja
“Nós vos pedimos, Senhor, fazei que o nosso coração corresponda a estas oferendas com as quais iniciamos nossa caminhada para a Páscoa” [1]. Desde o primeiro domingo da quaresma, a Igreja expressa de forma muito pontual, em sua liturgia, o caráter principal deste tempo: um esforço mais profundo por assemelhar o nosso coração ao de Cristo, juntando-nos com Ele na caminhada rumo àquele que deve ser o ponto central da nossa vida – a sua Páscoa [2].
Este esforço, que se acentua no tempo quaresmal em diversos âmbitos na Igreja, manifesta-se, na vida dos fiéis, através de muitas obras, mas sobretudo pela penitência e pela oração. À semelhança do povo de Israel que outrora passara 40 anos no deserto purificando-se para entrar na terra prometida; e de Cristo que rezou e jejuou por 40 dias também em um deserto e foi tentado por Satanás, a Igreja se une, todos os anos, pela penitência e oração, à luta que o povo de Israel um dia viveu no deserto, e que o Senhor a venceu plenamente, contra o mal que nos afasta de Deus.
A simbologia do relato da vitória de Jesus sobre as tentações (cf. Mt 4,1-11; Mc 1,12ss; Lc 4,1-13) é muito rica em significados. Em sua essência, as armadilhas de Satanás foram as mesmas nas quais caíram Adão e Eva no Paraíso ocasionando o primeiro pecado (Gn 3, 1-7), e as mesmas nas quais estamos submetidos até hoje [3].
O núcleo de toda a tentação, afirma o Papa Bento XVI comentando o trecho em questão do Evangelho, “é colocar Deus de lado, o qual, junto às questões urgentes da nossa vida, aparece como algo secundário, se não mesmo supérfluo ou incômodo. Ordenar, construir um mundo de modo mais autônomo sem Deus (...) aqui está a tentação que de muitas formas hoje nos ameaça” [4].
Mas Jesus nos mostra, pelo exemplo, que é possível superar toda espécie de pecado – pela nossa cooperação e com o auxílio da graça -, e que o que outrora fora causa de queda para todos nós, n’Ele agora é vencido. Mais ainda: Esta mesma vitória de Jesus pode ser aplicada na minha, na sua, e na vida de tantos outros que se determinam a cumprir aquilo que já era o centro da pregação de São João Batista e tornou-se também o do Senhor: “Fazei penitência, pois o Reino dos céus está próximo” (Mt 3,2. 4,17) [5].
O que é e qual é o critério para escolher a minha penitência?
Mas o que é penitência? Em um mundo que faz tantas caricaturas de Deus e da Igreja, a penitência muitas vezes é vista como algo irracional, sem sentido, praticada por pessoas maldosamente apelidadas de “fanáticas” e que são pintadas com uma certa inclinação masoquista. Mas será que é isso o que Jesus nos pede através da Igreja?
O Catecismo da Igreja Católica afirma que a penitência “contribui para nos fazer adquirir o domínio sobre os nossos instintos e a liberdade de coração”. E ainda: “é reorientação radical de toda a vida; retorno; conversão para Deus de todo o nosso coração; ruptura com o pecado; aversão ao mal; repugnância às más obras que cometemos” [6].
O Pe. Adolphe Tanquerey, grande mestre de vida interior, a define como sendo “uma virtude (....) que inclina o pecador a detestar o seu pecado por ser uma ofensa cometida contra Deus, e a tomar a firme resolução de o evitar para o futuro e de o reparar” [7].
Nos atentemos a este ponto importante: pelo pecado original nós adoecemos. Nas palavras de São Paulo:
“Como homem interior, ponho toda a minha satisfação na Lei de Deus; mas sinto em meus membros outra lei, que atua contra a lei de minha mente e me aprisiona na lei do pecado, que está nos meus membros” (Rm 7,22-23).
Deus nos criou bons, mas após o pecado de Adão há uma inclinação em nós para o pecado. Para constatá-lo, basta olharmos para nós mesmos. Quantas vezes preferimos os prazeres do mundo, os confortos, as satisfações, as injustiças favoráveis a nós, mesmo sabendo que são contra a Lei de Deus, mas que nos satisfazem momentaneamente? Quantas vezes buscamos o perdão na confissão, mas, logo depois, caímos miseravelmente nos mesmos pecados? Em nós há algo que nos afasta do Senhor, e que precisamos lutar contra, com a ajuda da graça.
A penitência, portanto, nos ajuda neste combate, a fim de que nos mantenhamos firmes nos mandamentos de Deus (cf. Jo 14,23). Ela é o “desejo e resolução de mudar de vida com a esperança na misericórdia divina e a confiança na ajuda de sua graça” [8]. Pode se manifestar através de um propósito, uma atitude, uma resolução que nos ajuda a lutar contra o que nos conduz ao mal. Um jejum, um esforço a mais, privar-se de algo que gostamos, são exercícios que nos ajudam na caminhada contra o pecado.
Daí, é possível tirar uma consideração importante: Antes de uma atitude meramente exterior, (que foi duramente criticada por Jesus em Mt 23,1-36), a penitência deve ser expressão de um coração que se reconhece pecador e quer se converter. Isto é fundamental ao elegermos os nossos exercícios quaresmais. Se escolho uma penitência que não me leva ao exercício contra um vício, um pecado, uma má inclinação que percebo em mim, a mesma não tem valor. Não basta uma simples abstinência de algo que talvez eu nem goste de comer. O sentido da penitência precisa ir além.
Da mesma forma, as “penitências” que pretendem evitar algo que já é previsto como pecado não constituem penitência, mas sim obrigação de todo cristão batizado. “Jejuar com a língua”, por exemplo, evitando falar mal dos outros não constitui um exercício penitencial, mas antes, uma obrigação que se estende para todos os tempos, pois o falar mal dos outros é uma ofensa ao oitavo mandamento da Lei de Deus. Em seu lugar, é possível fazer um exame de consciência e buscar encontrar as causas e motivações que levam a pecar por maledicência. Isso revelará muito sobre o que verdadeiramente deve ser combatido no coração e iluminará a escolha dos exercícios quaresmais.
As três dimensões da penitência: a relação comigo, com os outros e com Deus
Daqui, já podemos concluir que muito além de uma lista fixa de resoluções, a penitência é algo que precisa brotar de um coração que se reconhece pecador e necessitado da graça de Deus para converter-se. São resoluções criativas que o Espírito Santo suscita em nós. O Catecismo da Igreja Católica afirma, junto com os Santos Padres, que elas podem se dispor em três frentes principais: da relação consigo mesmo, da que temos com os outros e da que temos com Deus [9]. As sugestões que elencamos aqui serão divididas desta forma, podendo-se escolher mais do que uma ou adotando várias, em dias diferentes da Quaresma, de acordo com aquilo que pedir a oração e o exame de consciência pessoal.
A minha relação comigo mesmo
Com o pecado original, o homem prefere a si mesmo e não a Deus. Ele contraria o seu estado de criatura, o que afeta inclusive aquilo que entende ser o seu próprio bem [10]. Disso decorrem uma série de vícios pecaminosos que entram pelos cinco sentidos e o destroem, o afastam de seu Criador, e o levam a preferir as criaturas, esquecendo-se, muitas vezes, da própria dignidade.
Neste campo, é importante refletir: que atitudes minhas tem feito que eu atentasse contra mim mesmo, contra a minha saúde, contra a minha dignidade de filho de Deus? Tenho me entregado aos vícios, às imoralidades, à violência? O que pode me ajudar a combater e até mesmo extirpar esses comportamentos? Da resposta a essas perguntas, podem surgir resoluções que nos ajudem a lutar contra a tendência que o pecado tem de nos destruir. Sugerimos essas:
Para mortificar o paladar e o olfato:
- O jejum completo ou parcial em determinados dias da semana, de acordo com as condições necessárias ao estado de vida, ou a abstinência de certos alimentos das quais se goste;
- A abstinência de álcool, refrigerantes, sucos e bebidas que sejam supérfluas;
- Tomar café sem açúcar ou comer algum alimento sem sal;
- Evitar o consumo de sobremesas e doces;
- Deixar a mesa ainda não totalmente satisfeito;
- Evitar o uso de perfumes (desodorantes são necessários);
Para mortificar o tato:
- Dormir ou descansar em uma superfície mais dura por um determinado período, ou até mesmo sem travesseiro;
- Evitar o uso de ar condicionado ou ventiladores onde for possível;
- Caminhar um pouco mais do que é necessário, sem prejudicar o dever de pontualidade (p.ex. pegar um caminho mais longo, descer uma parada de ônibus antes do destino final);
- Optar por uma forma de transporte menos confortável;
- Cuidar para manter uma postura ereta, ou, por um período de tempo e sem prejuízo da coluna, não utilizar o encosto das cadeiras;
- Acordar alguns minutos mais cedo do que o habitual, se for possível.
Para mortificar a audição e a visão
- Cultivar o silêncio nos ambientes em que é possível (p.ex. deixar de ouvir músicas ao longo de um percurso ou durante o trabalho);
- Evitar escutar músicas seculares, optando por música clássica ou obras de autoria católica;
- Evitar a curiosidade dos olhos (p.ex. abster-se de redes sociais, reels, shorts, tik tok, e outros; Evitar navegação desnecessária em sites de compra on-line e etc.)
- Evitar videogames e serviços de streaming que não ofereçam opções para “santificar o tempo” e outros;
- Evitar um vestuário muito sofisticado. Vestir-se com mais simplicidade sem descumprir com a virtude da modéstia;
A minha relação com os outros
O pecado também feriu a relação necessária que o homem nutre com a sociedade que o cerca. Ela é indispensável para a realização da vocação humana, sendo necessário respeitar a justa hierarquia dos valores que “subordina as necessidades materiais e instintivas às interiores e espirituais” [11].
O egoísmo leva muitas vezes a desconsiderar as obrigações que o homem tem com os seus irmãos, e o testemunho de vida cristã que precisa exercer a partir do seu batismo. Ele pode se manifestar em diversas esferas sociais das quais o cristão trava contato todos os dias.
Reflita: no meu convívio com os outros, o que torna mais difícil o exercício da caridade cristã? Qual é a raiz dos pecados que cometo no meu relacionamento com as pessoas que me cercam? Aqui, sugerimos penitências relacionadas à família, às pessoas que temos convívio frequente e para com os pobres e doentes:
Para com a família
- Abdicar de um tempo livre para si a fim de dedicá-lo ao convívio familiar;
- Evitar a compra de algo supérfluo e destinar o dinheiro para um passeio ou momento em família, ou para ajudar no pagamento de alguma despesa;
- Adotar alguma tarefa doméstica a mais do que aquelas que são habituais;
- Visitar, telefonar ou mandar uma mensagem para parentes dos quais não se tem muito contato.
- Promover, por iniciativa própria, a reconciliação com parentes dos quais se nutre algum rancor;
Para com os que temos convívio frequente
- Oferecer acolhida para pessoas das quais não se tem muita afinidade (no trabalho, na escola/faculdade, na Igreja...);
- Fazer um esforço para conversar e conviver com pessoas das quais não se tem amizade ou que se nutre alguma antipatia;
- Procurar, nas conversas cotidianas, mais ouvir do que falar;
- Buscar manter conversas construtivas e edificantes;
- Oferecer ajuda a quem necessite;
Para com os pobres, doentes e encarcerados (cf. Mt 25, 31-46)
- Dar esmola sem olhar a quem pede e para que pede;
- Doar uma cesta básica para a paróquia mais próxima, ou para alguma obra social;
- Voluntariar-se para ajudar em algum projeto social que visa alcançar populações marginalizadas;
- Visitar algum enfermo;
- Visitar entidades de assistência à vulneráveis (asilos, orfanatos, casas de acolhida e etc.);
- Fazer uma experiência junto à pastoral carcerária e visitar os que estão presos;
A minha relação com Deus
O pecado destrói a comunhão dos homens com Deus (...) e torna-o incapaz de obter a vida eterna [12]. Ademais, destrói a caridade na alma e prejudica o Corpo de Cristo que é a Igreja (cf. 1Cor 12,26-27). As penitências que nos levam à maior comunhão com Deus podem ser expressas através da intensificação das orações e práticas espirituais tanto individuais como comunitárias.
Reflita: Como está a minha relação com Deus? Tenho cultivado um trato de amizade profunda e sincera, buscado o Senhor em todas as minhas necessidades, e estabelecido a Sua prioridade sobre todas as outras?
Abaixo estão sugestões de penitências que podem aprimorar este contato, levando em consideração que o que se enfoca aqui é o esforço por fazer determinada prática, e não a prática em si. (p.ex. participar de uma Santa Missa não pode ser considerado uma penitência, mas sim o esforço por acordar mais cedo (se for o caso) para participar dela);
Intensificar os períodos de oração diária, adotando uma prática para todos os dias quaresmais, como por exemplo, rezar o terço, rezar a via-sacra, o ofício divino e etc.;
Adotar um dia da semana ou horário fixo para fazer visitas ao Santíssimo Sacramento em uma Capela ou Igreja;
- Assistir a Santa Missa todos os dias da semana, ou no máximo de dias em que for possível;
- Fazer um exame geral de consciência, com coragem, sinceridade e transparência, abrangendo os pecados que se recordam de toda a vida, e confessá-los ao sacerdote.
- Rezar (oferecer missas, terços e etc.) pelos parentes, familiares, amigos, e por todos os que necessitam de oração;
- Rezar (oferecer missas, terços e etc.) por aqueles que temos dificuldade no convívio, pelos que não tem fé, ou que pensam diferente de nós;
- Rezar de joelhos (se possível);
- Buscar maior contato com a Palavra de Deus, acompanhando as leituras propostas pela liturgia diária, pela leitura sistemática de algum livro da Bíblia.
- Iniciar e finalizar uma leitura espiritual (vida dos santos, meditações, documentos magisteriais da Igreja);
- Neste Ano Jubilar de Nosso Senhor Jesus Cristo, procure peregrinar até uma Igreja jubilar, a fim de lucrar as indulgências concedidas especialmente para este ano.
REFERÊNCIAS
[1]. Missal Romano. Iº Domingo da Quaresma. Oração sobre as oferendas.
[2] Juan J Silvestre (Org.). O tempo presente: o ano litúrgico na vida dos cristãos. Gabinete de informação do Opus Dei: Lisboa, 2021. (p. 26).
[3] Catecismo da Igreja Católica, 538-540;
[4]. BENTO XVI. Jesus de Nazaré: do batismo no Jordão à transfiguração. Tradução de José Jacinto Ferreira de Farias. São Paulo: Planeta, 2016. (p. 41).
[5] O termo “penitência” aparece apenas na tradução oferecida pelo Pe. Matos Soares da Vulgata Latina. Em outras versões contemporâneas, encontramos o uso do termo “arrependei-vos”.
[6] cf. Catecismo da Igreja Católica, 2043; 1431.
[7] Adolphe Tanquerey. Compêndio de Teologia Ascética e Mística. São Paulo: Cultor de Livros, 2017. (página 373).
[8]. Catecismo da Igreja Católica, 1431.
[9]. Catecismo da Igreja Católica, 1434.
[10] Catecismo da Igreja Católica, 398.
[11]. Catecismo da Igreja Católica, 1886.
[12]. Catecismo da Igreja Católica, 761; 1472.