Tradição
Sagradas Escrituras

São Lucas: o Evangelista da Unidade

São Lucas relata, com clareza, que a salvação de Jesus faz de todas as nações uma só família em Deus.

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Certa vez uma mulher dirigiu-se ao Senhor e proclamou a grandeza de Sua Mãe, a Virgem Maria.  Quem poderia repreendê-la? Maria deu à luz o Filho de Deus! Ela não é uma mulher comum, igual às outras.  Sua missão foi inigualável.  

“Feliz o ventre que te trouxe e os seios que te amamentaram” (Lc 11, 37)

Jesus, então, aproveitando a ocasião, revelou que a maternidade de Maria era expressão de uma felicidade ainda maior. Foi da fidelidade a Deus que Maria pôde abrir-se para o mistério da maternidade divina.  

“Muito mais felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11, 28)

A novidade que Jesus revelou com essas palavras adquirem um valor ainda maior por terem sido registradas por São Lucas em seu Evangelho. Dos quatro evangelistas, ele era o único que não havia nascido em Israel.

[São Lucas] é o único autor gentio a compor um livro do Novo Testamento. Todos os outros eram de origem israelita. [1]  

Mas o que a origem étnica de São Lucas tem a ver com o ensinamento do Senhor sobre a grandeza de Maria? E o que essa questão, que parece tão teórica, tem a ver com a nossa vida concreta hoje?

É o que nós vamos estudar neste texto. Para responder a essas questões, vamos primeiro tratar do surgimento dos Evangelhos. Em seguida, nós estudaremos como o Evangelho de São Lucas se distingue dos outros três. Depois, veremos alguns dados biográficos do evangelista São Lucas que nos ajudam a entender sua missão.

O Surgimento dos Evangelhos

Poucos fiéis sabem, mas houve um processo de formação dos Evangelhos. Eles não estavam prontos desde o princípio. Coube à Tradição da Igreja preservar seu conteúdo para que fossem escritos com fidelidade.

Esse processo histórico ocorreu em três etapas. Primeiro, Jesus viveu entre nós e realizou a obra da salvação. Os quatro Evangelhos atestam o que Jesus fez e ensinou. Eles são documentos de valor espiritual e histórico.

A Igreja defende firmemente que os quatro Evangelhos, “cuja historicidade afirma sem hesitação, transmitem fielmente aquilo que Jesus, Filho de Deus, ao viver entre os homens, realmente fez e ensinou. [2]  

Em seguida, após a Ascensão, houve a transmissão oral do que o Senhor havia feito e ensinado. Aquela primeira geração de cristãos ainda não tinha os Evangelhos. O que eles tinham, então? A Igreja!

O próprio Jesus não escreveu nada e, até onde sabemos, nunca solicitou aos discípulos para que escrevessem qualquer coisa. Sua ordem para eles era sempre “façam isto”, e não, “escrevam isto”; e esse “isto” se referia à Igreja em formação, o Sacramento de Seu corpo e sangue. [3]

A Igreja é fundamental nos planos de Deus. Os evangelistas escreveram na Igreja e partir da Igreja, sob inspiração do Espírito Santo. Contavam com conteúdos que a Sagrada Tradição havia conservado.

Os autores sagrados, porém, escreveram os quatro Evangelhos, escolhendo algumas coisas entre as muitas transmitidas por palavra ou por escrito. [4]  

Já meditamos sobre este processo no artigo “A Bíblia é católica”. Tentamos mostrar que, quando falamos de Tradição Apostólica, referimo-nos à experiência original dos Apóstolos com Cristo. A Igreja é o lugar onde essa experiência pode ser tocada e vivida até hoje, em qualquer lugar do mundo.

Tradição não é transmissão ou coleção de coisas ou palavras, uma coleção de coisas mortas. A Tradição é o rio vivo que nos liga às origens, onde elas estão sempre presentes. O grande rio que nos conduz ao porto da eternidade. [5]

Até aqui vimos que a Igreja e o Evangelho são indissociáveis. Com esse ponto de partida, nós podemos agora nos aproximar com mais embasamento das características do Evangelho de São Lucas.  

O Evangelho de São Lucas

São muitos os temas do Evangelho de São Lucas. Ele se interessa, por exemplo, pela oração e pela infância de Jesus. Mas há um tema principal. São Lucas relata, com clareza, que a salvação de Jesus faz de todas as nações uma só família em Deus.

Lucas enfatiza em todo o seu evangelho que Cristo veio reunir todos os povos na família de Deus. [6]

Família de Deus é uma expressão muito importante. Ela transmite a ideia de que a Nova Aliança é um vínculo de amor que se estende a todos os povos, não somente ao povo de Israel. Família e aliança são realidades muito próximas na Bíblia.

O que é uma aliança? A pergunta nos leva de volta à realidade primordial que tratamos anteriormente neste capítulo: a família. No antigo Oriente Médio, uma aliança era um vínculo sagrado de parentesco com base num juramento que introduzia alguém num relacionamento familiar com outra pessoa ou tribo. [7]  

No Antigo Testamento, lemos que Deus renovou a aliança muitas vezes. A cada vez, porém, o Senhor ampliava um pouco mais o alcance da aliança. Na passagem do Antigo para o Novo Testamento, ocorreu uma transição inesperada.

Quando Deus fez suas alianças com Adão, Noé, Abraão, Moisés e Davi, foi inserindo gradativamente um grupo mais amplo de pessoas em Sua família: primeiro um casal, depois uma família, uma nação e, finalmente, o mundo.

Em Jesus Cristo, realiza-se tudo que havia sido previsto e preparado no Antigo Testamento. Pode-se dizer que Ele conduziu a Antiga Aliança à plenitude, ao estabelecer a Nova e Eterna Aliança.

[Deus] escolheu, por isso, Israel como seu povo. Estabeleceu com ele uma aliança e instruiu-o passo a passo… Tudo isso, porém, aconteceu em preparação e figura para aquela nova e perfeita aliança que se estabeleceria em Cristo… Esta é a Nova Aliança, isto é o Novo Testamento em seu sangue, chamando de entre judeus e gentios um povo que junto crescesse na unidade, não segundo a carne, mas no Espírito. [8]  

Agora podemos retornar ao início do texto. Por que a Virgem Maria é mais feliz por ter ouvido a Palavra de Deus do que por ter gerado o Filho de Deus? É que o vínculo de sangue que unia o Povo de Deus (Israel) na Antiga Aliança era uma preparação para um vínculo familiar mais perfeito na Nova Aliança.

Pertence ao povo de Deus quem pertence a Cristo. [9]

A fé é o laço que nos une a Deus! A salvação está aberta a todas as pessoas, de todos os povos. Será que nós percebemos a novidade deste anúncio? Temos um vínculo misterioso, em Deus, com pessoas de todas as nações e épocas. Esse vínculo é a nossa comunhão em Cristo.  

O Evangelista São Lucas

São Lucas foi um evangelista singular. Como já mencionamos, ao contrário de todos os outros autores sagrados do Novo Testamento, ele não era israelita. Além disso, participou de duas viagens apostólicas de São Paulo, de quem era muito próximo (2Tm 4,11), e foi fiel até ao ponto de acompanhá-lo ao cárcere em Roma.

Ele viajou com Paulo por alguns trechos da sua segunda e terceira viagens missionárias, e esteve presente no seu primeiro encarceramento em Roma. [10]

Alguns estudiosos entendem que São Lucas provinha de Antioquia, onde os cristãos foram assim chamados pela primeira vez (At 11, 26). Seja como for, possuía uma boa cultura e era médico de profissão (Cl 4, 14)

Lucas, sírio de Antioquia, foi o autor inspirado do terceiro Evangelho. Um médico por profissão, homem de cultura com um grego perfeito, ele era discípulo de Paulo e foi um gentio que se converteu nos primeiros anos [da Igreja], por volta do ano 40. [11]  

Foi a este homem, que não participou do grupo dos Doze Apóstolos, que o Espírito Santo inspirou para escrever duas obras do Novo Testamento. Além do terceiro Evangelho, ele foi autor dos Atos dos Apóstolos.

Lucas é o único evangelista a escrever uma sequência. Além deste evangelho, ele escreveu os Atos dos Apóstolos como a segunda parte de uma obra de dois volumes. O livro dos Atos começa no ponto em que a narrativa do Evangelho de Lucas termina, mostrando como a atuação do Espírito Santo na vida de Jesus agora opera na comunidade viva do corpo místico de Cristo, a Igreja. [12]

Mais uma vez, chegamos à importância da Igreja. Não podemos separar a Bíblia da Igreja, nem Jesus da sua Igreja.

Um Evangelista

São Lucas é um evangelista que nos recorda que a Igreja é sempre missionária. Ela é enviada pelo Senhor Jesus a todas as nações, para que todos se salvem. Ser Igreja é pertencer ao novo Povo de Deus.

Ao novo Povo de Deus todos os homens são chamados. Por isso, este Povo, permanecendo uno e único, deve estender-se a todo o mundo e por todos os séculos, para se cumprir o desígnio da vontade de Deus que, no princípio, criou uma só natureza humana e resolveu juntar em unidade todos os seus filhos que estavam dispersos (cfr. Jo. 11,52) [13]

Todos nós devemos zelar pela unidade da Igreja. Nela, a humanidade é chamada a encontrar a paz. Você reza pela unidade da Igreja? E pelo papa? Reza pelas missões, pelos cristãos perseguidos?

Que São Lucas interceda por todos nós!

Referências

[1] Scott Hahn & Curtis Mitch. O Evangelho de São Lucas - Cadernos de Estudo Bíblico. Campinas, SP: Ecclesiae, 2015 p. 19.

[2] Catecismo da Igreja Católica, 126.

[3] Scott Hahn. Razões para Crer. Lorena, SP: Cléofas, 2017. p. 82.

[4] Dei Verbum, 19.

[5] Papa Bento XVI. Os Apóstolos e os Primeiros Discípulos de Cristo: nas Origens da Igreja. São Paulo: Paulus, 2011 p. 29.

[6] Scott Hahn & Curtis Mitch. O Evangelho de São Lucas - Cadernos de Estudo Bíblico. Campinas, SP: Ecclesiae, 2015 p. 19.

[7] Scott Hahn. Salve, Santa Maria. Lorena, SP: Cléofas, 2017. p. 30-31.

[8] Catecismo da Igreja Católica, 781.

[9] Joseph Ratzinger (entrevistado) & Peter Seewald (entrevistador). Sal da Terra: o Cristianismo e a Igreja Católica no Novo Milênio. Campinas SP: Ecclesiae, 2022. p.145.

[10] Scott Hahn & Curtis Mitch. As Cartas de São Paulo aos Tessalonicenses, a Timóteo e a Tito - Cadernos de Estudo Bíblico. Campinas, SP: Ecclesiae, 2020. p. 88.

[11] Antonio Fuentes. The Gospel According to Luke.

[12] Scott Hahn & Curtis Mitch. O Evangelho de São Lucas - Cadernos de Estudo Bíblico. Campinas, SP: Ecclesiae, 2015. p. 19.

[13] Lumen Gentium, 13.