Os Evangelhos são como vastos oceanos, cada um oferecendo uma nova profundidade do mistério de Deus. São narrativas vivas, pulsantes, que nos envolvem e nos transformam à medida que nos abrimos para elas. Nos Evangelhos, o amor de Deus é explicitamente revelado de forma sublime e palpável, não como uma história de um passado distante, mas como uma realidade viva e presente, encarnada na pessoa de Jesus Cristo.
Os escritos de São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João são como faróis que iluminam a vida de Cristo por diferentes ângulos e com ênfases particulares. Como católicos, somos chamados a nos aproximar dos Evangelhos com reverência e sensibilidade, saboreando as peculiaridades de cada relato.
Agora, embarquemos juntos em uma jornada de conhecimento, explorando o Evangelho de Mateus, que, além de ser o mais extenso, é também o que mais se conecta à Antiga Aliança, ou seja, o Antigo Testamento.
São Mateus em linhas gerais
O Evangelho de São Mateus é o primeiro dos quatro Evangelhos canônicos e apresenta uma narrativa teológica e literária única entre os textos do Novo Testamento. Segundo estudiosos, foi escrito entre 42 e 50 d.C. e é conhecido por sua organização e por estabelecer uma ponte entre o Antigo e o Novo Testamento.
Dividido em 28 capítulos, o Evangelho de Mateus pode ser visto como um verdadeiro “manual” para a vida cristã, pois contém cinco grandes discursos de Jesus. Mateus inicia seu relato com a infância de Jesus e conclui com a Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor. Entre essas duas grandes narrativas, encontram-se os cinco discursos, intercalados com relatos da vida prática de Jesus, como seus milagres e confrontos com as autoridades religiosas. Podemos reconhecer uma estrutura básica de São Mateus que tem como centro a profissão de fé do Apóstolo Pedro (Mt 16, 13-20):
- Narrativas da infância e preparação para a pregação do Evangelho: capítulos 1 a 4;
- Discursos e Ministério público de Jesus: capítulos 5 a 25;
- Narrativas da Paixão, Morte e Ressurreição: capítulos 26 a 28.
Estudiosos frequentemente comparam os cinco discursos aos primeiros cinco livros das Escrituras – o Pentateuco – composto por Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Esse paralelismo sugere uma ligação intencional do evangelista com a tradição judaica. Os judeus chamam o Pentateuco de Torá, que significa “lei” ou “instrução”. Assim, Mateus parece apresentar os cinco discursos de Jesus como a nova Torá, revelando que o Senhor Jesus é o “novo Moisés”, aquele que finalmente traz o cumprimento da Lei em sua plenitude. [1]
Esses discursos são:
1 - O Sermão da Montanha (Capítulos 5 a 7):
É o mais longo discurso de Jesus, onde Ele ensina princípios éticos e espirituais fundamentais para a vida cristã. Nele, Jesus proclama as Bem-aventuranças, orienta sobre a verdadeira justiça, e oferece ensinamentos sobre o amor ao próximo, a oração e como deve ser nossa confiança inabalável em Deus.
2 - Discurso sobre a Missão dos Apóstolos (Capítulo 10):
Jesus dá instruções detalhadas aos doze Apóstolos sobre como devem realizar sua missão de pregar o Reino de Deus. Ele orienta sobre a simplicidade no caminho, a coragem diante das perseguições, a total dependência de Deus e a importância de anunciar o Evangelho com determinação e fidelidade.
3 – Discurso das Parábolas do Reino (Capítulo 13):
É uma coleção de parábolas que Jesus usa para explicar o Reino de Deus. Através de histórias simples, usando imagens e metáforas do cotidiano – como as parábolas do Semeador, do Joio e do Trigo, do Grão de Mostarda e do Fermento – Jesus ensina sobre o crescimento, os desafios e a natureza do Reino. Essas parábolas revelam que o Reino de Deus começa de maneira discreta, mas possui um poder transformador, e sua plena manifestação será no fim dos tempos, quando haverá uma separação entre os justos e os ímpios.
4 - Discurso Eclesiástico (sobre a comunidade dos cristãos – Capítulo 18):
Trata das diretrizes de Jesus para a vida e a convivência dentro da Igreja. Nele, Jesus ensina sobre a humildade, usando a figura de uma criança como exemplo de grandeza no Reino dos Céus, e enfatiza o cuidado com os “pequenos” e vulneráveis. Ele também aborda temas como a correção fraterna, o perdão ilimitado, e a importância da reconciliação entre os irmãos.
5 - Discurso Escatológico (sobre o fim dos tempos – Capítulos 24-25):
Jesus fala sobre os eventos que ocorrerão no fim da história. Esse discurso trata de Sua segunda vinda, o julgamento final e os sinais que precederão esses acontecimentos, como guerras, desastres naturais e perseguições. Nosso Senhor exorta à vigilância e à prontidão, usando parábolas como a das Dez Virgens e a dos Talentos para ilustrar a necessidade de estar preparado para o Seu retorno.
Como podemos ver, Mateus é um escritor habilidoso e equilibrado, estruturando seu Evangelho de forma a alternar entre os discursos de Jesus as narrativas de Sua vida. A cada discurso, segue-se um relato de eventos práticos, o que cria uma harmonia natural entre palavra e ação. Essa organização oferece a nós, cristãos, uma fluidez que facilita a compreensão das instruções de Jesus, ao mesmo tempo em que apresenta exemplos concretos de como Ele viveu o que ensinava.
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O autor, um ex-cobrador de impostos
O Evangelho de São Mateus é tradicionalmente atribuído a Mateus (ou Levi), um dos doze Apóstolos, que antes de seguir Jesus era cobrador de impostos. Na época de Jesus, os judeus que exerciam essa função, chamados também de “Publicanos”, eram amplamente desprezados por seu próprio povo. Isso ocorria porque eles trabalhavam para o Império Romano, coletando impostos dos judeus e, muitas vezes, extorquindo valores acima do necessário, enriquecendo-se à custa da exploração.
Para os judeus, os cobradores de impostos eram vistos como traidores, colaborando com o poder estrangeiro que os dominava. Além disso, eram considerados impuros, pois se associavam com gentios nas injustiças financeiras, o que os afastava ainda mais da vida religiosa e social da comunidade judaica.
A escolha de Jesus em se associar e chamar publicanos, como o próprio Mateus, foi um ato radical de misericórdia, quebrando barreiras sociais da época. Ao acolher aqueles que eram socialmente desprezados ou marginalizados (ou que, em algum momento, se marginalizaram), Jesus demonstrou que seu ministério estava aberto a todos que se arrependessem, independentemente de sua condição ou vida pregressa.
Jesus acolhe no grupo dos seus íntimos um homem que, segundo as concepções em vigor na Israel daquele tempo, era considerado um público pecador. De fato, Mateus não só administrava dinheiro considerado impuro devido à sua proveniência de pessoas estranhas ao povo de Deus, mas colaborava também com uma autoridade estrangeira odiosamente ávida, cujos tributos podiam ser determinados também de modo arbitrário. Por estes motivos, mais de uma vez os Evangelhos falam unitariamente de “publicanos e pecadores” (Mt 9, 10; Lc 15, 1), de “publicanos e prostitutas” (Mt 21, 31). Além disso eles veem nos publicanos um exemplo de mesquinhez (cf. Mt 5, 46: amam os que os amam) e mencionam um deles, Zaqueu, como “chefe dos publicanos e rico” (Lc 19, 2), enquanto a opinião popular os associava a “ladrões, injustos, adúlteros” (Lc 18, 11). É ressaltado um primeiro dado com base nestes elementos: Jesus não exclui ninguém da própria amizade. Ao contrário, precisamente porque se encontra à mesa em casa de Mateus-Levi, em resposta a quem falava de escândalo pelo fato de ele frequentar companhias pouco recomendáveis, pronuncia a importante declaração: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os enfermos. Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mc 2, 17). [2]
O nome: Mateus ou Levi?
A Tradição da Igreja identifica o evangelista Mateus com Levi devido à correspondência entre as narrativas dos Evangelhos que mencionam o chamado de Levi e a inclusão de Mateus entre os Doze Apóstolos. Nos Evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), há relatos sobre um cobrador de impostos que é chamado por Jesus para segui-lo. No Evangelho de Mateus (9, 9), ele é identificado explicitamente como “Mateus”, enquanto em São Marcos (2, 14) e São Lucas (5, 27), o cobrador de impostos é chamado de “Levi”. Ao unir essas narrativas, a Igreja concluiu que Mateus e Levi eram a mesma pessoa.
A diferença nos nomes pode ser explicada pelo costume, comum entre os judeus do primeiro século, de ter mais de um nome. Era frequente que as pessoas tivessem um nome hebraico ou aramaico para o uso cotidiano e um nome grego ou romano para contextos públicos ou profissionais, como o de um cobrador de impostos. Assim, “Levi” seria o nome hebraico, enquanto “Mateus” poderia ser usado em um contexto mais formal e cosmopolita ou até representar uma mudança de identidade após sua conversão como discípulo de Cristo.
A relevância de ter sido um dos doze
O fato de Mateus ser uma testemunha ocular dos acontecimentos confere um grande peso historiográfico ao seu relato. Como um dos doze Apóstolos, Mateus esteve diretamente envolvido com o ministério de Jesus, vivenciando Seus ensinamentos, milagres e a ressurreição, o que dá ao seu texto uma autenticidade determinante na averiguação histórica.
Dentro de uma perspectiva religiosa, esse olhar pessoal não apenas oferece um conteúdo histórico, mas também teológico, confirmando a confiabilidade e a importância do seu relato para a compreensão da vida do galileu e a missão redentora do Cristo.
O público-Alvo de Mateus
O público-alvo principal do Evangelho de Mateus era a comunidade cristã de judeus que estavam se convertendo, provavelmente localizada em Antioquia da Síria, onde havia uma significativa presença judaica.
Mateus, sendo ele mesmo um judeu que havia seguido Jesus e se tornado Apóstolo, possuía um verdadeiro conhecimento das Escrituras hebraicas e da tradição judaica. O propósito de Mateus no seu relato era demonstrar que Jesus e a fé n’Ele não representava uma rejeição do judaísmo, mas sim o seu pleno cumprimento.
Mateus tendo primeiro proclamado o evangelho em hebraico, quando estava para ir também às outras nações, colocou-o por escrito em sua língua natal [hebraico] e assim, por meio de seus escritos, supriu a necessidade de sua presença entre eles. [3]
A Relação com o Antigo Testamento
Uma das maiores riquezas do Evangelho de São Mateus – e talvez a que mais se sobressai – é a maneira como ele conecta Jesus diretamente às Escrituras do Antigo Testamento. Mateus cita mais de 100 vezes as profecias antigas, mostrando como elas se cumprem na vida de Cristo. Seu objetivo é apresentar Jesus como o cumprimento das esperanças e expectativas messiânicas do povo judeu.
Por isso, o Evangelho de Mateus é muitas vezes considerado uma das principais chaves interpretativas para entender o Antigo Testamento. Ao longo do texto – e como já mencionamos – Jesus é retratado como o novo Moisés, o profeta por excelência que traz uma nova lei e conduz o povo de Deus a uma nova e eterna aliança.
O paralelo entre as narrativas do Antigo Testamento e a vida de Jesus é recorrente em Mateus. Um exemplo é o episódio em que Jesus e sua família fogem para o Egito e retornam após a morte de Herodes, ecoando a história de Moisés e o Êxodo. Da mesma forma, a “nova lei” apresentada por Jesus no Sermão da Montanha é uma clara referência à Lei entregue a Moisés no Monte Sinai.
Um dos aspectos mais notáveis é a recorrência da expressão “para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas”, que aparece inúmeras vezes ao longo do relato de Mateus. Isso mostra que o evangelista tinha uma preocupação constante em estabelecer que Jesus era o Messias esperado pelos judeus.
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Outras particularidades
Além da relação com as profecias do Antigo Testamento, podemos também destacar outras particularidades contadas no Evangelho de Mateus:
A genealogia de Jesus (1, 1-17):
Mateus inicia seu Evangelho com uma genealogia, destacando sua preocupação em apresentar Jesus como o filho de Abraão, herdeiro da Aliança, e como o Rei dos Judeus. Ao enfatizar que Jesus é descendente de Davi, Mateus O conecta diretamente à promessa messiânica, mostrando que Jesus é o cumprimento das expectativas proféticas do povo judeu.
A visita dos Reis Magos (2, 1-12):
O relato dos magos do Oriente, que seguem uma estrela até encontrar e adorar o Menino Jesus, é exclusivo do Evangelho de Mateus. Esse episódio simboliza o reconhecimento do Messias por parte dos gentios, demonstrando que, desde o nascimento, Jesus é visto como o Salvador não apenas dos judeus, mas de todas as nações.
O “Emanuel” (1, 23):
“Eis que uma Virgem conceberá e dará à luz um filho, que se chamará Emanuel, que significa: Deus conosco”. Essa passagem cita uma profecia encontrada em Isaías 7, 14. O nome “Emanuel é usado somente por Mateus para destacar que Jesus é a encarnação de Deus, presente entre nós, cumprindo a promessa do próprio Deus no Antigo Testamento de estar perto dos Seus de forma concreta e física.
Parábolas exclusivas:
Mateus inclui algumas parábolas que não se encontram em outros Evangelhos, como a parábola dos trabalhadores na vinha (20, 1-16) e a parábola das dez virgens (25, 1-13). Através delas, Jesus ensina sobre a justiça divina e a importância da vigilância, destacando a necessidade de estar preparado para a vinda do Senhor.
“Reino dos Céus”:
Mateus utiliza constantemente o termo “Reino dos Céus” em vez de “Reino de Deus”, uma escolha que pode refletir a sensibilidade judaica de evitar o uso direto do nome de Deus. Essa prática era comum entre os judeus, que preferiam usar termos substitutos para se referir a Deus. Ao escrever para um público predominantemente judaico, Mateus adota essa expressão para tornar sua mensagem culturalmente acessível, sem comprometer o significado teológico: a soberania de Deus.
Palavra sobre a Igreja:
Mateus é o único evangelista que menciona explicitamente a palavra “igreja” (do grego ekklesia). No capítulo 16, Jesus declara: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja”, marcando um momento fundamental no estabelecimento institucional da Igreja e da liderança espiritual de Pedro. Embora o termo ekklesia originalmente signifique “assembleia”, em Mateus ele adquire um sentido mais profundo, apontando para o caráter visível da comunidade cristã e para a unidade entre Cristo e a Igreja (“minha Igreja”) pela história.
O Messias dos judeus é o Salvador do mundo todo
Mas Jesus, aproximando-se, lhes disse: “Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 18-20)
Mateus conclui seu Evangelho mostrando que o Messias do povo eleito veio, redimiu a humanidade do pecado e abriu as portas da graça. Em Cristo, a salvação, antes reservada aos judeus, agora está disponível a todos, abrangendo o mundo inteiro.
Diante dos acontecimentos da Paixão e Ressurreição, Mateus destaca que Nosso Senhor não apenas cumpriu as promessas feitas ao povo de Israel, mas trouxe algo muito maior: Ele é o próprio Deus encarnado que oferece a redenção universal.
O testemunho de Mateus diz muito para cada um de nós. Antes visto como traidor, após seu encontro com Jesus, Mateus experimentou uma belíssima redenção pessoal e um amor totalmente renovado por seu povo. Seu Evangelho reflete esse amor, pois São Mateus, com toda sinceridade, quis convencer e encorajar sua nação de que Jesus era o verdadeiro Messias prometido nas Escrituras. Ao apresentar Jesus como o cumprimento das profecias, ele buscou revelar aos seus compatriotas a grandeza do plano divino e o amor incondicional de Deus por toda a humanidade.
Aprendamos com Mateus. Ele nos convida sempre a ler o Antigo Testamento de forma cristocêntrica, ajudando-nos a enxergar, em cada passagem, a presença viva de Cristo e o cumprimento das promessas de Deus. Isso é uma verdadeira dádiva!
Que seu Evangelho inspire em nós uma compreensão cada vez mais profunda da Palavra de Deus e nos faça mais participantes da fé da Igreja, fundada por Cristo e conduzida ao longo dos séculos pelos Apóstolos e seus sucessores, sempre sob o primado de Pedro.
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Referências:
[1] Cf. Scott Hahn e Curtis Mitch, O Evangelho de São Mateus: Cadernos de Estudo Bíblico. Ecclesiae, 2014, p. 22.
[2] Papa Bento XVI – Audiência Geral - Quarta-feira, 30 de Agosto de 2006.
[3] Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, Livro III, capítulo 24.