Em 1925, o papa Pio XI publicou uma carta encíclica sobre o reinado social de Cristo, chamada Qua Primas. Não era um tempo fácil. A Primeira Guerra Mundial já havia acabado, mas o mundo continuava sob seu forte impacto.
Foi essa guerra que estava em andamento quando Nossa Senhora apareceu em Fátima. Ela pediu a paz, de uma forma que nos convida à meditação. Muitas vezes pensamos que a causa das guerras se deva apenas a eventos geopolíticos e econômicos, mas o que Nossa Senhora disse foi bem diferente:
“Vistes o inferno, para onde vão as almas dos pobres pecadores; para as salvar, Deus quer estabelecer no mundo a devoção a Meu Imaculado Coração. Se fizerem o que Eu vos disser, salvar-se-ão muitas almas e terão paz. A guerra vai acabar. Mas, se não deixarem de ofender a Deus, no reinado de Pio XI começará outra pior (...)” [1]
O que podemos aprender com essas palavras? Certamente muitas coisas! Uma que não pode nos escapar é o ensinamento de que o mundo possui um fundamento espiritual. Os acontecimentos da vida, inclusive aqueles de repercussão pública, não se reduzem ao plano visível. Nós vivemos em meio a um aguerrido combate espiritual.
A nossa luta não é contra o sangue e a carne, mas contra os principados, as potestades, os dominadores deste mundo tenebroso, os espíritos malignos espalhados pelo espaço. (Gl 6, 12)
É por isso que foi muito conveniente que o papa Pio XI instituísse a Solenidade de Cristo Rei. Passados cem anos, em meio a muitas guerras e discórdias, o mundo precisa lembrar-se de que não poderá haver uma verdadeira paz sem que Cristo reine nos corações.
Mas o que significa falar no reinado de Cristo? E como podemos contribuir para que Cristo reine? Essas perguntas são o tema motivador deste artigo. Nele, você vai aprender que a fé católica é um convite sempre novo a uma conversão profunda.
Cristo é Rei
É evidente que Cristo é Rei! Não há católico que duvide. Mas será que você saberia explicar o porquê? Naturalmente, trata-se de uma metáfora. Jesus não ocupou nenhum cargo político, como os reis deste mundo.
Tem sido costume geral e antigo chamar Jesus Cristo de “Rei”, em sentido metafórico, por causa do grau supremo de excelência que Ele possui e que O eleva acima de todas as coisas criadas. [2]
Mas é claro que, para além do sentido metafórico, há em Jesus Cristo uma realeza propriamente dita. Tudo que existe está submetido a seu poder, inclusive os poderes mundanos. Não há rei na terra que tenha tido tanto poder! Seu reinado é bastante efetivo.
É evidente que, também em sentido próprio e estrito, pertence a Jesus Cristo, como homem, o título e o poder de “Rei”; pois somente enquanto homem se diz que Ele recebeu do Pai o poder, a honra e o reino. [3]
Foram muitas as profecias do Antigo Testamento que anunciaram a realeza do Cristo, mas talvez a mais eloquente delas tenha sido a que foi dirigida ao rei Davi pela boca do profeta Natã. Foi prometido que o Cristo seria um descendente de Davi.
Quando teus dias se completarem e repousares com teus pais, suscitarei um descendente teu para te suceder, saindo de tuas entranhas, e eu firmarei o seu reino. Ele construirá uma casa para o meu nome, e eu firmarei o trono de seu reino para sempre. (2Sm 7, 12-13)

Muitos entenderam essa profecia em sentido estritamente político, como se o Messias prometido devesse garantir algum tipo de hegemonia ao Reino de Israel perante as outras nações do mundo. Contudo, não era a esse tipo de realeza que a profecia se referia!
Era preciso ter fé para aceitar que o Messias — o descendente de Davi — viria dar a vida pela libertação das almas, que estavam dominadas por satanás. Foi o que aconteceu na Cruz. Ali, ficou manifesto que a realeza do Cristo não poderia ser dissociada do mistério da Redenção.
A entrada de Jesus em Jerusalém manifesta a vinda do Reino que o Rei-Messias vai realizar pela Páscoa de sua Morte e Ressurreição. [4]
Você sabia que a palavra Cristo não é o sobrenome de Jesus? Na verdade, ela é um título. Trata-se da tradução grega de “Messias”. Proclamar que Jesus é o Cristo significa afirmar que Ele é o Rei prometido por Deus.
Ser da descendência de Abraão e Davi é o que estabelece as credenciais de Jesus e o legitima como o verdadeiro Messias esperado pelo povo de Israel (Mt 1, 1.16). Há muito tempo, Deus já havia prometido a Abraão que de sua linhagem viriam “reis” (Gn 17, 6) e, mais adiante, selou um juramentos com Davi no qual lhe garantia que sua dinastia teria sempre um herdeiro (2Sm 7, 16; Sl 89, 3-4). [5]
Agora podemos nos aproximar com mais embasamento da primeira questão que motivou este artigo. Vamos estudar o que significa falar no “reinado de Cristo”.
Ele está no meio de nós!
Se Cristo está no Céu, como Ele reina entre nós na terra? O Senhor atua por meio da Sua Igreja, que é a manifestação visível do Reino. Não pense que a Igreja seja uma agremiação meramente humana, a exemplo dos clubes sociais. Ela é um mistério, por meio do qual Cristo conduz a história humana e evangeliza os corações.
Já presente em sua Igreja, o Reino de Cristo ainda não está consumado “com poder e grande glória” (Lc 21, 17). [6]
Evangelizar é levar a presença de Cristo a todas as áreas da vida humana. Hoje em dia muitas pessoas gostariam de reduzir a atuação da Igreja à esfera privada, mas não é lícito para um católico pensar assim.
A evangelização não é uma comunicação. Ela é, antes de tudo, um testemunho. Ela se faz com o corpo, com cansaço e sofrimento. Os sacrifícios de Cristo são o nosso modelo. A evangelização é uma nova encarnação do Verbo de Deus. [7]
Não podemos ser católicos pela metade! A fé diz respeito à vida como um todo. Ela alcança o nascimento e a morte, o trabalho e o lazer. Não pode ficar restrita ao tempo de oração, por mais sublime que ele seja. É preciso que dê frutos.
Um dos frutos mais belos da fé é a promoção dos valores cristãos. Você já meditou sobre a importância dos valores? Não há sociedade que consiga se organizar bem se não houver consenso em torno de seus valores.
Vivemos um tempo de grande confusão na sociedade justamente porque não há mais um firme consenso em torno de valores fundamentais. O mundo moderno vem perdendo o sentido do pecado há muito tempo, como já nos alertava o papa Pio XII no ano de 1946:
Talvez o maior pecado do mundo hoje seja que os homens começaram a perder o sentido do pecado. [8]
Por vezes, até mesmo católicos se esquecem dos valores fundamentais do Reino de Deus! Vejamos agora um caso concreto para ajudar-nos a enxergar o problema mais de perto.
É só uma mentirinha?
Você já percebeu que a sociedade já não se escandaliza tanto quando alguém mente? Algo está mudando no plano dos valores. Nós, porém, não podemos transigir com a mentira, como se ela fosse aceitável em certas circunstâncias.
Jesus fala de rei, de reino, referindo-Se não ao domínio mas à verdade. Pilatos não entende: poderá haver um poder que não se obtenha com meios humanos? Um poder que não corresponda à lógica do domínio e da força? Jesus veio para revelar e trazer uma nova realeza: a realeza de Deus. [9]
A defesa da verdade não é uma questão teórica, afastada da realidade concreta, como pode parecer à primeira vista. Afinal, qual sociedade poderá sobreviver à proliferação de mentiras? Certamente nenhuma, pois toda mentira tende a fragmentar a vida social.
A mentira é funesta para toda a sociedade; mina a confiança entre os homens e rompe o tecido das relações sociais. [10]
Talvez um pequeno exemplo ajude a compreender melhor esse ponto. Você confiaria em um médico, se soubesse que ele mente para a própria família? Eu acho que não. Por mais qualificado que ele fosse em termos técnicos, a sua vida moral provocaria desconfiança em sua atuação profissional.
Se é assim com um simples médico, como será com a sociedade toda? Anunciar o Reino de Cristo é um exercício de caridade para com todos. Não há futuro para a sociedade que rejeita a Deus!
Mentir é prática comum em um mundo que já não teme a Deus. A mentira é um abismo onde o diabo reina supremo. [11]
Não há meio-termo. Ou a sociedade se abre ao Reino de Cristo e terá paz; ou será escravizada pelo diabo e viverá em conflito. Nessa encruzilhada, cabe ao católico dar testemunho a todos de que vale a pena seguir o Senhor Jesus.
Uma Solenidade Necessária
A celebração da Solenidade de Cristo Rei é um convite à nossa conversão. Ela nos convida a examinar o nosso compromisso moral com o Senhor Jesus. Qual é o testemunho que damos com a nossa vida? Os valores que recebemos devem ser vividos e transmitidos, para que a luz do Evangelho alcance a todos.
Que Nossa Senhora Rainha interceda por todos nós!
Referências
[1] Irmã Lúcia. Memórias da Irmã Lúcia I. 13.ª ed. Fátima: Secretariado dos Pastorinhos, 2007. p. 121.
[2] Papa Pio XI. Qua Primas, 6.(tradução livre).
[3] Papa Pio XI. Qua Primas, 6. (tradução livre).
[4] Catecismo da Igreja Católica, 560.
[5] Scott Hahn & Curtis Mitch. O Evangelho de São Mateus: Cadernos de Estudo Bíblico. Campinas, SP: Ecclesiae, 2014. p. 27.
[6] Catecismo da Igreja Católica, 671.
[7] Cardeal Robert Sarah A Noite se Aproxima e o Dia já Declinou — 1a ed. São Paulo: Edições Fons Sapientiae, 2019. p. 275.
[8]Papa Pio XII. Radiomensagem na conclusão do Congresso Eucarístico dos Estados Unidos em Boston. 26 de outubro de 1946.
[9] Papa Bento XVI. Homilia da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo. 25 de novembro de 2012.
[10] Catecismo da Igreja Católica, 2486.
[11] Cardeal Robert Sarah A Noite se Aproxima e o Dia já Declinou — 1a ed. São Paulo: Edições Fons Sapientiae, 2019. p. 320.






