A Bíblia é complexa. Sua leitura apresenta desafios para todos nós. Quando nós lemos o Antigo Testamento, por exemplo, ficamos perplexos com algumas passagens que relatam episódios de poligamia. Alguns homens importantes, como o rei Davi, tiveram muitas mulheres.
Depois que veio de Hebron, Davi tomou ainda concubinas e mulheres em Jerusalém, e nasceram para Davi filhos e filhas. (2Sm 5, 13)
Esse versículo, como toda a Bíblia, é inspirado pelo Espírito Santo. Alguém poderia, então, perguntar-se: Será que o certo não seria que cada homem tomasse várias esposas para si? Ora, é claro que não!
Para entendermos a Bíblia corretamente, é preciso interpretá-la com o mesmo Espírito que a inspirou. Se cada um tiver a sua própria interpretação pessoal, em pouco tempo o entendimento da Escritura cairá no caos.
A Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com a ajuda do mesmo Espírito que levou à sua redação. [1]
Assim, é preciso entrar em comunhão com a Tradição da Igreja para acessar o sentido do Antigo Testamento. Ele possui um valor permanente. Apresenta-nos ensinamentos preciosos de Deus a respeito do ser humano, transmitindo assim uma sabedoria que vem do Alto. Nem por isso, porém, tudo que se encontra em suas páginas seja perfeito.
Embora contenham também coisas imperfeitas e transitórias, os livros do Antigo Testamento dão testemunho de toda a divina pedagogia do amor salvífico de Deus. [2]
Este artigo visa responder à sua dúvida sobre a poligamia no Antigo Testamento. A ideia central será apresentar uma referência geral que auxiliará você a ler outras passagens do Antigo Testamento.
Mas, desde já, adiantamos que não vamos repetir conteúdos de que já tratamos antes. Primeiro, vamos abordar um tema semelhante - o divórcio. Em seguida, faremos o paralelo com o caso da poligamia. Você já percebeu que são similares? Depois, vamos responder a questão do artigo e propor um caminho de aprofundamento no conhecimento da Bíblia.
Uma Permissão Temporária
Toda doutrina da Igreja provém de Cristo. É meditando sobre a vida do Senhor que encontramos o modo correto de lermos o Antigo Testamento. O exemplo abaixo vai nos ajudar a visualizar melhor essa verdade.
Certa vez, enquanto corrigia Seus adversários, o Senhor Jesus deixou claro que uma das normas mais básicas da vida de Israel tinha sido uma concessão temporária àquele povo por conta de suas limitações.
Moisés permitiu repudiar a mulher, por causa da dureza do vosso coração, mas não foi assim desde o princípio. Ora, eu vos digo: quem repudia sua mulher - fora o caso de união ilícita - e se casa com outra, comete adultério. (Mt 19, 8)
Esse ensinamento foi um escândalo para muitos. Mais que uma correção, era o exercício de uma prerrogativa divina. É que somente Deus tem autoridade para declarar que o mandamento transmitido por Moisés não era perene.
Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e esta não agradar a seus olhos porque encontrou nela algo inconveniente, escreverá um documento de repúdio , o entregará na mão dela e a despedirá de sua casa. (Dt 24, 1)
Não é que Deus tivesse mudado de ideia. Desde o início, o plano de Deus era que o matrimônio fosse estável e exclusivo. Já nas origens da história humana, muito antes que a Lei de Moisés fosse dada, o Senhor apresentou como era o sonho que tinha para o matrimônio dos filhos de Adão.
O homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne. (Gn 2, 24)
Mas o pecado provocou distorções em nossos relacionamentos. Por isso, o Senhor concedeu que a Lei de Moisés transigisse com o divórcio até que Cristo a levasse à plenitude. O vínculo matrimonial é sagrado.
O vínculo que une o casal no sacramento do Matrimônio é criado por Deus (Mt 19, 6) e pode ser dissolvido apenas pela morte de um dos esposos (cf. Rm 7, 1-13) [3]
Vimos até aqui que nem tudo no Antigo Testamento era definitivo! O sentido de suas prescrições só se realiza em Jesus Cristo. Com tal referência em mente, podemos agora abordar o tema da poligamia.
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Outra Permissão Temporária
Poligamia é como chamamos ao casamento de um homem com muitas mulheres. Trata-se de uma violação da lei moral porque se opõe à comunhão esponsal que deve haver entre os dois cônjuges. Ela fere a dignidade dos cônjuges, que são iguais perante Deus, comprometendo assim a possibilidade de eles amarem-se uns aos outros.
A poligamia não se coaduna com a lei moral. “Opõe-se radicalmente à comunhão conjugal, pois nega diretamente o plano de Deus tal como nos foi revelado nas origens, porque contrária à igual dignidade entre o homem e a mulher, que no matrimônio se doam com um amor total e por isso mesmo único e exclusivo”. [4]

Tanto a poligamia quanto o divórcio maculam o vínculo matrimonial. Ambos inviabilizam a íntima comunhão de vida e de amor a que os esposos são chamados. Com a família, não se brinca. É fundamental sempre zelarmos pela dignidade do casamento.
O adultério e o divórcio, a poligamia e a união livre são ofensas graves à dignidade do casamento. [5]
Agora já podemos entender que, assim como Deus tolerou o divórcio por um período em Israel, assim também concedeu a alguns homens do Antigo Testamento a dispensa à proscrição da poligamia.
Uma e outra eram normas temporárias. Elas estavam destinadas a cessar com a vinda de Cristo, pois todo o Antigo Testamento converge para o Seu mistério. Passado o tempo das exceções, a beleza da monogamia pôde brilhar com força.
Tenha cada um a sua mulher, e cada mulher, o seu marido (1Cor 6, 2)
Mas por que será que Deus concedeu àqueles homens do Antigo Testamento uma dispensa à proibição da poligamia? É o que examinaremos a seguir.
Um Tempo Difícil
A concessão da poligamia a algumas gerações da época do Antigo Testamento decorreu de uma necessidade histórica. Não era conveniente que o Povo de Israel, cuja população não era ainda muito numerosa, desaparecesse.
Para conduzir o povo naquele tempo difícil, Deus decretou uma norma excepcional autorizando por inspiração divina aqueles santos homens a praticarem a poligamia de modo a aumentar as famílias.
Somente Deus pôde conceder dispensa mediante uma inspiração interna, a qual principalmente receberam os santos patriarcas e, vendo o exemplo deles, derivou para outros durante o tempo em que era conveniente não observar tal preceito natural a fim de multiplicar mais amplamente a prole e educá-la para o culto divino. [6]
É importante observarmos que somente o Senhor Deus tem autoridade para excepcionar uma lei natural, inscrita em nossos corações. Não nos cabe deliberar nestes temas.
Plenitude dos Tempos
O sentido espiritual do Antigo Testamento foi o de uma longa preparação para a vinda de Cristo. Como cristãos, nós cremos que Jesus de Nazaré é o Messias prometido por Deus a Israel.
Com a vinda do Cristo, podemos dizer que já entramos na plenitude dos tempos (Gl 4, 4). Desse modo, lemos o Antigo Testamento à luz do mistério de Cristo morto e ressuscitado dos mortos.
Os cristãos lêem o Antigo Testamento à luz de Cristo morto e ressuscitado. [7]
Como é bom vivermos depois que toda a Revelação Divina se completou! Hoje em dia temos acesso seguro ao Antigo e ao Novo Testamentos, além da Tradição da Igreja e de seu Magistério. O nosso caminho é muito seguro. Você já agradeceu a Deus por essa graça? Muitos profetas e santos quiseram escutar o Evangelho e não puderam.
Em verdade vos digo, muitos profetas e justos desejaram ver o que estais vendo, e não viram. Desejaram escutar o que estais escutando, e não escutaram. (Mt 13, 17)
Caso você queira crescer ainda mais no seu conhecimento da Bíblia, recomendamos a leitura de um artigo complementar. Chama-se “A Parte mais Importante da Bíblia”. Você já leu? Nele, falamos da leitura da Bíblia com base nas chamadas prefigurações. Talvez seja um bom momento para conhecer do que se trata.
Que Nossa Senhora interceda por todos nós!
Referências
[1] Concílio Vaticano II. Dei Verbum 3, 12.
[2] Catecismo da Igreja Católica, 122.
[3] Scott Hahn & Curtis Mitch. O Evangelho de São Mateus: Cadernos de Estudo Bíblico. Campinas, SP: Ecclesiae, 2014. p. 101.
[4] Catecismo da Igreja Católica, 2387.
[5] Catecismo da Igreja Católica, 2400.
[6] Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. Suplemento. Questão 65, 2.
[7] Catecismo da Igreja Católica, 129.